* Se precisar citar, tê-lo como referência, seguir:
DANTAS, Bárbara. "Huelva, o islã e o triunfo da Virgem Maria: Arquitetura nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X." In: CORTIJO, Antonio; MARTINES, Vicent (orgs.). Mirabilia / MedTrans 11, Jan-Jun 2020, p. 34-50. Disponível em: https://www.revistamirabilia.com/sites/default/files/medtrans/pdfs/02._dantas.pdf e https://www.barbaradantas.com/post/huelva-o-isl%C3%A3-e-o-triunfo-da-virgem-arquitetura-nas-cantigas-de-santa-maria-de-afonso-x
Resumo: As Cantigas de Santa Maria do rei Afonso X é um trabalho com três expressões artísticas: música, literatura e pintura. São cerca de 420 canções com relatos de milagres e louvores à Virgem, escritas em galego-português, acompanhadas de iluminuras que representam as palavras em imagens. O foco será demonstrar a presença de formas arquitetônicas no texto e na iluminação da Cantiga 273, a história do milagre na cidade de Huelva-Andaluzia. Arquitetura como registro das derrotas e vitórias que ocorreram nas batalhas entre cristãos e mouros durante os séculos da Reconquista da Península Ibérica, bem como o pacífico sincretismo artístico do período.
Palavras-chave: Islã – Virgem Maria – Arquitetura – Guerra – Idade Média.
Resumen: Las Cantigas de Santa María del rey Alfonso X es una obra con tres expresiones artísticas: música, literatura y pintura. Son cerca de 420 canciones con relatos de milagros y alabanzas a la Virgen escrito en gallego-portugués, acompañados por iluminaciones que representam en imágenes las palabras. El foco será demostrar la presencia de formas arquitectónicas en el texto y en la iluminación de la Cantiga 273, el relato de milagro en la ciudad de Huelva-Andalucía. La Arquitectura como un registro de las derrotas y victorias ocurridas en las batallas entre cristianos y moros durante los siglos de la Reconquista de la Península Ibérica, así como el pacífico sincretismo artístico del período.
Palabras-clave: Islam – Virgen Maria – Arquitectura – War – Edad Media.
Abstract: The Cantigas de Santa Maria by king Alfonso X is a work with three artistic expressions: music, literature and painting. There are about 420 songs with reports of miracles and praises to the Virgin written in galician-portuguese and accompanied by illuminations that represent words in images. The focus will be to demonstrate the presence of architectural forms in the text and the illumination of the Cantiga 273, the miracle report of the city of Huelva-Andalusia. The architecture as a record of the defeats and victories occurred in the battles between christians and moors during the centuries of the Reconquest of the Iberian Peninsula, as well as the pacific artistic syncretism of that time.
Keywords: Islam – Virgin Mary – Architecture – La Guerra – Middle Ages.
I. As Cantigas de Santa Maria
Um dos períodos mais prósperos da Idade Média no Ocidente europeu ocorreu no século XIII. Pelo menos é o que demonstra a infinidade de textos, imagens e obras arquitetônicas que chegaram até nossos dias. Dentre estes vestígios de um passado tão remoto, impressionamo-nos com tamanha diversidade criativa, materiais e técnicas que enobreceram as expressões artísticas de então.
A estupefação pode aumentar quando nos deparamos com uma obra como as Cantigas de Santa Maria. Nela, estão presentes todas as Artes: o códice é formado por cerca de 420 louvores e relatos de milagres à Virgem Maria escritos em galego-português medieval por meio de versos (literatura); estes versos formam canções que foram produzidas por trovadores, as notações musicais estão presentes em muitas cantigas (música); quase todas as cantigas são “iluminadas” por imagens que vão desde letras capitulares às iluminuras historiadas de página inteira (pintura); e, tanto nos textos quanto nas iluminuras, encontramos representações de formas arquitetônicas com diferentes funções (arquitetura).
O responsável por essa obra foi o rei de Leão de Castela, Afonso X (1221-1284). Ainda em vida, ganhou a alcunha de Rei Sábio por sua dedicação aos mais diversos ramos das artes e da ciência. Para a produção das Cantigas de Santa Maria o monarca contratou diferentes eruditos, tradutores, artistas e trovadores para tornar realidade esta obra magnânima, um conjunto de canções destinado às procissões nas festas marianas.
II. Huelva e a “pobre” igreja da Virgem
A Cantiga 273 narra um milagre da Virgem que ocorreu em Huelva, cidade que (segundo nos conta a cantiga) era repleta de perdizes e coelhos, os animaizinhos pululavam ali, como revela a Imagem 1.
Imagen 1
Afonso X. Cantigas de Santa Maria. Vinheta 03 da iluminura de página inteira da Cantiga 273. Códice de Florença. Século XIII. Biblioteca de Obras Raras da PUC-Minas. Arquivo pessoal.
Tomei a liberdade de escrever um resumo em prosa da cantiga para que o leitor se inteire do conteúdo deste belo relato:
No interior do castelo estava o santuário de Santa Maria, porém, era pequeno e pobre. O sino, contudo, era tão grande como necessitava aquela comunidade e, no interior da igreja, a arquitetura era nobre: o teto era coberto. No mês de Agosto, durante as festividades em homenagem à Virgem, um homem pobre, porém, bom notou que os panos do altar estavam em farrapos, precisavam de remendos, e como não possuía nada de valor para ofertar, decidiu costurá-los. Para isso, buscou por toda cidade quem lhe doaria os fios, a agulha e os panos para coser o tecido sagrado. Pediu, rogou, mas não conseguiu nem um fio sequer. Sentiu-se desamparado, quando, de repente, dois fios desceram-lhe pelo ombro. Maravilhado, afirmou que milagre como esse não é antigo, é novo, por isso, todos os varões deveriam ter a Virgem Gloriosa em seus corações. A igreja foi tomada pela população que foi presenciar o milagre e, ante o altar, em oração, choraram. Ali mesmo, fizeram muitas oferendas para que o altar da Virgem se tornasse magnífico como Ela.
Agora (no extrato textual abaixo seguido da sua tradução) notar-seá como o galego-português daqueles tempos se parece bastante com o português falado atualmente no Brasil. Esta é uma vertente mais erudita da língua da Galícia medieval, não se trata, por isso, da língua falada no cotidiano. Mas, é um estupendo exemplo de como era nossa Língua Mãe, o galego-português medieval:
Ali á hũa eigreja desta Virgen groriosa, que é dentro no castelo, nen ben feita nen fremosa, mas pequena e mui pobre e de todo menguadosa, e campãa á tamanna qual conven ao concello [...] e per cima da eigreja era o teito coberto.
[Ali existe uma igreja desta Virgem gloriosa, dentro do castelo. Não é bem feita nem formosa, mas pequena e muito pobre, de tudo faltosa. Mas, o sino é do tamanho que convém ao povo [...] e por cima da igreja era o teto coberto].[1]
III. A Reconquista da Península Ibérica
Quando, enfim, os resultados das batalhas da Reconquista da Península Ibérica se tornaram favoráveis aos reinos cristãos do norte peninsular, cidades da Andaluzia (como Huelva) ganharam novos governantes. Ou seja, até o século XI, a preponderância política, militar e econômica peninsular estava nas mãos dos líderes que professavam a religião fundada por Maomé (-632), o islamismo.[2]
No relato de milagre da Cantiga 273, Huelva já estava sob a autoridade cristã, pois, com a chegada dos vencedores nos territórios recém-subjugados aos hispano muçulmanos ou mouros (muçulmanos da Península Ibérica), chegou também o cristianismo. De modo geral, a historiografia aceita que os reis cristãos toleraram a religião muçulmana nas regiões recém-adquiridas pela Reconquista. No entanto, os habitantes daquelas regiões tiveram duas opções: emigrar, conforme o ditame do Alcorão que determinava a fuga rumo a terras islâmicas para não se submeter à autoridade de outra religião; ou permanecer, com a obrigação do pagamento de tributo aos novos governantes. Naquela circunstância crítica, algumas comunidades preferiram a emigração.[3]
Os mouros foram tolerados porque eram considerados infiéis (com os hereges não ocorria a mesma tolerância), visto que professavam uma religião com poucas afinidades teológicas em relação ao cristianismo. Tolerados sim, mas com algumas reservas, principalmente no tocante às relações sociais e políticas. Naquele ambiente controverso, as relações interculturais e econômicas eram livres e profícuas. As Cantigas de Santa Maria surgem como um conjunto poético e imagético daquela sociedade, ao mesmo tempo, diacrônica e sincrônica, ou seja, que relegou os mouros às aljamas, mas também aderiu ao conhecimento e à cultura mudéjar (nome dado aos muçulmanos que aceitaram viver sob o governo de cristãos).[4]
IV. Arquitetura cristã em território mouro
Mudéjares como o pequeno grupo de nobres descendentes dos primeiros árabes que se instalaram em Huelva aceitaram viver sob a influência cristã e, aos cristãos, pagar os devidos tributos.[5] “Ali existe uma igreja da Virgem gloriosa, localizada dentro de um castelo” conta o relato de milagre da Cantiga 273. Isso significa que, em Huelva, antiga urbe moura, a Virgem se instalou junto com o governo cristão. Porém, a capela “não é bem feita, nem formosa, mas pequena e muito pobre, de tudo faltosa”. Apesar de sua pobreza, o novo santuário mariano na antiga cidade moura simboliza o triunfo da Virgem sobre a religião maometana.[6]
Imagen 2
Afonso X. Cantigas de Santa Maria. Vinheta 03 da iluminura de página inteira da Cantiga 301. Códice de Florença. Século XIII. Biblioteca de Obras Raras da PUC-Minas. Arquivo pessoal.
Após a conquista de Sevilha por Fernando III (1199-1252) em 1248, três culturas coexistiram no mesmo território: mouros, judeus e cristãos.[7] Na Imagem 2, duas representações da Arquitetura medieval na Península Ibérica: a cristã e a mudéjar. Nesta vinheta da Cantiga 301, simbolicamente, a cultura cristã se sobrepõe à islâmica ao “estreitar” suas construções entre duas formações arquitetônicas cristãs. Estreita-se metaforicamente no centro da vinheta, entre as formas românicas (à direita) e as góticas (à esquerda). Arquitetura de formas islâmicas visível no arco em ferradura e na ornamentação de motivos abstratos com formas geométricas entrelaçadas, também presente nos elementos da obra românica, à esquerda.
V. Virgem Maria como ecclesia
A Virgem se tornou a figuração do santuário de Deus, a igreja materializada espiritual e institucionalmente. A Santa Maria do século XIII, por conseguinte, transformou-se em Virgem-Igreja, coroada por Cristo e sentada ao seu lado no trono celestial. A exegese medieval, fundamentada em Agostinho, tornou a ecclesia um produto do sangue vertido por Cristo durante a Paixão. Maria, sua Mãe, seria a mantenedora de sua construção. Eis que surge a figura da Mãe de Cristo como a entidade mais representativa daquele ideal de naturalidade, conforto e, sobretudo, do poder cristão.[8]
À exceção do Reino de Granada, que permaneceu independente quando a Andaluzia foi tomada pelos esforços militares conjugados em torno de Fernando III, a organização administrativa cristã mudou a estética urbana das cidades tomadas em torno do que García de Cortázar denominou como “cristianización urbanística”.[9]
VI. A civilização moura na Península Ibérica
Contudo, antes das vitórias cristãs sobre os infiéis muçulmanos da península, a civilização moura engrandeceu com cultura e riqueza suas mais importantes cidades na Andaluzia: Saragoça, Toledo, Sevilha e ... Córdoba. Fundada ainda na Antiguidade, por volta do ano 206 a.C., após a ocupação muçulmana da península a partir de 711, Córdoba se tornou o centro a partir do qual todo o esplendor da arte e da cultura islâmica irradiaria. Seu caráter cosmopolita acolheu a todos, mas sua monumental mesquita determinava a quem deveriam obedecer. As Arquiteturas de Sevilha e de Toledo encontraram na de Córdoba seus elementos primordiais.[10]
Os mouros tiveram grande êxito nas atividades ligadas à Arquitetura e ao desenvolvimento de espaços urbanos bem estruturados. Entre os séculos VIII e XI, enquanto o Ocidente mergulhava em guerras intestinas e nas penúrias das pestes e invasões bárbaras, o Islã prosperava: o refinamento intelectual e artístico oriental sobrepujou a realidade ocidental por séculos.[11]
Imagen 3
Sala hipostila da Mesquita de Córdoba – Espanha, século VIII.
A construção da Mesquita de Córdoba iniciou-se em 785 e a imensidão horizontal e quadrangular do santuário, preenchida pela “floresta de colunas” encimadas por arcos bicolores, envolve os olhares em uma impetuosidade estética singular, o luxuriante interior da mesquita confirma a riqueza daquela civilização peninsular antes mesmo da virada do primeiro milênio (Imagem 3).[12]
A Arquitetura dos seguidores de Maomé, prolixa em detalhes ornamentais e abstratos, disseminou seus matizes e delineamentos estéticos nas regiões onde se estabeleceu a influência política-religiosa do Islã. Nesse sentido, a Muqarna e o arco em ferradura são os pormenores distintivos da arquitetura-ornamentação islâmica durante a Idade Média.[13]
Desde os tempos medievais as muqarnas fascinam. Estes alvéolos pendurados nos tetos que descem voluptuosamente pelos recantos murais ganharam diversas designações no decorrer dos séculos: foram chamados de “estalactites islâmicas”, “arcos com alvéolos”, “estruturas em favo”, “nichos com estalactites”, “favo de colmeia”, “estalactites geométricas” e “estalactites decorativas”. Sua gênese é incerta, provavelmente, a ideia surgiu em escultores persas nas décadas finais do século X, como aparece na Imagem 4.[14]
Entre os séculos XI e XII, o uso das muqarnas propagou-se pelos territórios sob domínio muçulmano. A partir do século XIII, elas preencheram espaços em obras cristãs da Península Ibérica, tamanha foi a admiração que os “favos de colmeia” da Arquitetura Islâmica causaram na Cristandade.[15]
Imagen 4
Muqarnas no Pátio dos Leões no Palácio de Alhambra, Granada – Espanha, século IX.
Imagen 5
Desenho esquemático de muqarnas. Topkapi Scroll. Irã, século XV.
Os escultores sírios-muçulmanos foram virtuosos artífices desta estrutura que promove uma atmosfera mística ao ambiente. Aquela perícia notável, aliada a princípios matemáticos e geométricos elaborados, tornou possível a realização das muqarnas a partir do tijolo, estuque ou pedra,[16] tanto em cúpulas como em capitéis.[17] A Imagem 5 exibe um plano de estudos para a realização de ornamentos em forma de muqarnas.
Imagen 6
Arcos em ferradura do Patio del Yeso do Alcáçar de Sevilha – Espanha, 1364.
Similar admiração e maior popularidade obteve o arco em ferradura islâmico, estas formas ornamentais distinguem o Alcáçar de Sevilha como um magnífico exemplo do sincretismo artístico medieval entre os cristãos e outras culturas, como vimos na Imagem 6. Este palácio foi encomendado em estilo mudéjar por D. Pedro I (1334-1369), rei católico de Castela, a artistas de Granada e de Córdoba. Os arcos em ferradura se destacam entre os elementos arquitetônicos de um constructo característico da Andaluzia desde o fim dos embates mais acirrados das batalhas da Reconquista.[18]
Com o fim dos ataques militares recíprocos Granada se manteve de pé. Preservou tanto sua magnitude artística quanto sua resistência às investidas militares castelhanas. Em 1246, o emir de Granada, Muhammad Ibn Nasr (1232-1273) assinou uma trégua com o rei Fernando III que cessou as operações militares contra o Reino de Granada. Em 1254, Afonso X ratificou o acordo e promoveu a manutenção do tributo anual que o emir continuaria a pagar, as parias.[19]
Este acordo era benéfico a ambos, para Afonso X em particular, porque mantinha estreitos contatos com o mundo cultural e artístico granadino. Dessa forma, notamos que a relação da Arte com os fatos históricos é pujante. O historiador da arte, nesse sentido, parte do universo artístico rumo ao mundo social e essa metodologia nos ajuda a entender melhor o interesse do rei sábio pela cultura dos islâmicos e as implicações na arte de sua curiosidade.[20]
Curiosa afinidade, embora simultânea a um sentimento intenso de rejeição. Afonso X pactuava a mentalidade do Ocidente em relação ao Islã. Jéròme Baschet chamou esta sensibilidade coletiva de um “fascínio-repulsa”.[21] Atitude similar à do filósofo catalão Ramon Llull, um coquetel composto tanto de interesse pela cultura islâmica como de incentivo às Cruzadas e à conversão forçada dos seguidores de Maomé.
Afonso X também registrou seu desejo de expulsar os mouros da península e, nesse viés, a Cantiga 401 relata que “Contra os mouros que tem terras no Ultramar e em grande parte da Espanha, para meu pesar, dê-me poder e força para os derrotar”.[22] Para García Fitz, os versos das Cantigas de Santa Maria que aludem à expulsão dos mouros da península expressam os anseios reais de Afonso X.[23]
VII. A arquitetura mudéjar
Mas, no universo das Cantigas, os mouros também são talentosos mestres na arte de construir. O texto da Cantiga 358, por exemplo, conta que o mestre chamado “Ali” era talentoso, fazia com esmero seu ofício e foi homem sábio ao aceitar que foi graças à intervenção da Virgem que os operários encontraram pedras de grande valor para a obra: “Quando o mestre Ali viu isto, embora fosse mouro, pensou que bem guardadas estavam, como um tesouro da Virgem, aquelas pedras tão valiosas quanto ouro. Foram logo trabalhar nelas como se fossem pedras cruas”.[24]
Indício arquitetônico daquela prática é a igreja românico-mudéjar de Sahagún construída no Caminho a Santiago de Compostela. A metade inferior da obra foi realizada por obreiros cristãos e a parte superior foi um trabalho de mozarifes, construtores mudéjares, como demonstra a Imagem 7.[25]
Imagen 7
Igreja românica-mudéjar de Sahagún – Espanha, séc. XII.
Do mesmo modo, as Cantigas se manifestam a respeito da construção de igrejas cristãs na Andaluzia erigidas a mando do rei Afonso X. O texto da Cantiga 356 revela que a Virgem intercedeu, novamente, a favor de construtores. O título da canção afirma: “Santa Maria do Porto fez surgir, mesmo sem madeira no local, uma ponte de madeira sobre o rio Guadalete para ajudar a construção de sua igreja”.[26] Este rio se localiza na Andaluzia e foi um dos maiores escoadouros de materiais de construção para os santuários marianos da região. A construção de pontes góticas é uma das marcas da construção gótica civil a partir do século XIII na Península Ibérica, o que nos faz pensar em como a “engenharia gótica” abarcou todos os âmbitos da sociedade medieval.[27]
Imagen 8
Detalhe da fachada da torre da Igreja de Santa Maria de Teruel. Aragão – Espanha, 1257.
Outro milagre da Virgem ocorreu com o próprio rei Afonso X quando se viu gravemente doente ao visitar o canteiro de obras de um santuário da Virgem que mandou construir na Andaluzia nos moldes de uma igreja-fortaleza, coroada por torres e envolta por uma muralha. A Cantiga 367 relata que: “Aquilo aconteceu ao rei de Castela e de Santiago de Compostela enquanto via a igreja bela que ele fez em Andaluzia [...] Em pouco tempo foi acabada. Em honra da Virgem, coroada de torres e de muros cercada, segundo a necessidade que aquele lugar tinha”.[28]
8. Las Huelgas de Burgos
As Cantigas, de fato, demonstram que a relação com os mouros era intensa. Em quatro canções, o códice afonsino exalta a importância do mosteiro cisterciense para mulheres, Las Huelgas. Este mosteiro também foi erigido segundo a estética mudéjar e a mando de Fernando III. Seu teto de madeira tem a característica arte geométrica islâmica e o conteúdo ornamental é trabalhado sobre o estuque, preferência árabe que saiu da Península Arábica e chegou na Ibérica (Imagem 9).[29]
Imagen 9
Detalhe do teto de Las Huelgas, mosteiro cisterciense para mulheres. Burgos – Espanha, 1275.
No texto Cantiga 122 (ver na Imagem 10 um detalhe de sua iluminura), Fernando III prometeu uma de suas filhas à ordem cisterciense, assim que ela nasceu: “Sua mãe criou essa menina para encaminhá-la a Las Huelgas de Burgos”. A Cantiga 221 relata um milagre que ocorreu enquanto a esposa de Afonso VIII (1155-1214), Leonor Plantageneta (1162-1214) cuidava da construção do santuário: “Essa mulher construía o mosteiro das Huelgas”.[30]
Imagen 10
Afonso X. Cantigas de Santa Maria. Vinheta da iluminura de página inteira da Cantiga 122. Códice Rico. Século XIII. Biblioteca de Obras Raras da PUC-Minas.
Arquivo pessoal.
O título da Cantiga 303 nos adianta seu conteúdo: “Como uma imagem de Santa Maria falou a uma moça que estava com medo nas Huelgas de Burgos”. O mosteiro feminino também foi palco do milagre da Cantiga 361, como sugere o título da canção: “Como Santa Maria fez em Huelgas de Burgos com que uma imagem sua se mexesse na cama onde a deitaram”.[31]
Conclusão
Portanto, na cidade moura de Huelva, a Virgem ganhou um humilde santuário. Segundo o relato de milagre da Cantiga 273 operou um milagre de tal magnitude que as multidões de fiéis para ali acorreram em busca das bênçãos daquela santa tão poderosa. A religião de Maomé se viu sobrepujada pelo fervor mariano em Huelva. Naquela cidade, a Virgem triunfou como fez em todo o Ocidente medieval. A Arquitetura Cristã espalhada pela Andaluzia e dedicada à santa é a prova material de seu triunfo.
A Virgem como a personificação da advogada (“avogada” no galego-português das Cantigas de Santa Maria) que, dentre todos os santos, era a maior benfeitora da cristandade.[32] Naquele universo de lutas, o ideal da guerra santa era o que prevalecia, guerra que, na ocasião da vitória, os símbolos da religião perdedora perdiam seu espaço para as representações da religião vitoriosa. Foi assim que surgiu a crença em torno da Virgem como aquela que sempre conduz os cristãos à vitória.
Bibliografia
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Notas:
[1] AFONSO X, o Sábio. Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann. Vol. 2. Madri: Castalia, 1988, p. 39/10-13, 17 (tradução da autora). [2] STIERLIN, Henri. Islão: de Bagdade a Córdova, a arquitetura primitiva do século VII ao século XIII. Colônia: Taschen, 2009, p. 07. [3] O’CALLAGHAN, Joseph F. El Rey Sabio: el reinado de Alfonso X de Castilla. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1999, p. 134. [4] GARCÍA DE CORTAZÁR, José Angel. Historia de España: la época medieval. Vol. 2. Madri: Alianza editorial, 1988, p. 112. [5] HEERS, Jacques. História medieval. São Paulo: Difel, 1977, p. 331. [6] “A evolução da iconografia marial segue passo a passo os progressos e o triunfo daquela.” DUBY, Georges. O tempo das catedrais: a arte e a sociedade (980-1420). Lisboa: Estampa, 1979, p. 155-156. [7] FOCILLON, Henri. Arte do Ocidente: a Idade Média Românica e Gótica. Lisboa: Estampa, 1978, p. 227. [8] BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p. 474. [9] GARCÍA DE CORTAZÁR, op. cit., 1988, p. 175. [10] CÓMEZ RAMOS, Rafael. “La arquitectura en las miniaturas de la corte de Alfonso X el Sabio.” In: Alcanate: revista de estudos alfonsíes, Sevilha, ano VI, 2008-2009, p. 210. Disponível em: http://editorial.us.es/es/alcanate-revista-de-estudios-alfonsies/num_6 [11] BASCHET, op. cit., 2006, p. 83. [12] STIERLIN, op. cit., 2009, p. 84. [13] CÓMEZ RAMOS, loc. cit., p. 215. [14] AL-ASAD, Mohammad; NECIPOGLU, Gülru. TheTopkapi Scroll: geometry and Ornament in Islamic Architecture: Sketchbooks & Albums Series (with an essay on the Geometry of the Muqarnas by Mohammad al-Asad). Topkapi Palace Library MS. H. 1956. Santa Monica: The Getty Center for the History of Art and the Humanities, 1995 (tradução da autora). [15] CÓMEZ RAMOS, op. cit., 2008-2009, p. 222. [16] GISPERT, Hélène. “La correspondance de G. Darboux avec J. Hoüel: Chronique d’un rédacteur (déc. 1869–nov. 1871).” Cahiers du Séminaire d’histoire des mathématiques 8 (1987), 67–202. Disponível em: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0315086099922346 [17] “Encontram-se no Irão e no Iraque actuais, e em Espanha e Marrocos, construídas em tijolo, enquanto que na Turquia, no Caio e na Índia são em pedra. As estalactites, que resultam da divisão dos pendentes e dos consequentes nichos, em forma de conchas triangulares [...] Surgiam em capitéis e em salas abobadadas, onde formavam grandes pendentes nos cantos das cúpulas.” STIERLIN, op. cit., 2009, p. 202-204. [18] TOMAN, Roman. O Gótico: arquitetura, escultura e pintura. Colônia: Könemann, 1998, p. 279. [19] RUCQUOI, Adeline. Historia Medieval da Península Ibérica. Editorial Estampa, Lisboa, 1995, p. 201. [20] ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 1993, p. XII. [21] BASCHET, op. cit., 2006, p. 85. [22] “Contra os mouros, que terra d’Ultramar teen e en Espanna gran part’ a meu pesar, me dé poder e força pera os en deitar.” AFONSO X, op. cit., 1989, p. 304 (tradução da autora). [23] “Reflejan las creencias, opiniones y aspiraciones personales del rey de Castilla.” GARCÍA FITZ, Francisco. “Alfonso X y sus relaciones con el Emirato granadino: política y guerra.” In: Alcanate: revista de estudos alfonsíes, Sevilha, ano VI, 2008-2009, p. 40 (tradução da autora). Disponível em: http://editorial.us.es/es/alcanate-revista-de-estudios-alfonsies/num_6 [24] “Pois maestr' Ali viu esto, empero que x'era mouro, entendeu que ben guardadas tevera com' en tesouro a Virgen aquelas pedras que tan preçadas com' ouro foran pera lavrar toste e mais ca pedra muda.” AFONSO X, op. cit., 1989, p. 228 (tradução da autora). [25] TOMAN, Roman. O Românico: arquitetura, escultura e pintura. Colônia: Könemann, 2000, p. 196. [26] “Como Santa Maria do Porto fez vĩir ũa ponte de madeira pelo rio de Guadalete pera a obra da sa ygreja que fazian, ca non avian y madeira com que lavrassen.” AFONSO X, op. cit., 1988, p. 225 (tradução da autora). [27] GARCÍA DE CORTAZÁR, op. cit., 1988, p. 208. [28] “Aquest' avẽo al Rey de Castela e de Santiago de Compostela quand' ya veer a ygreja bela que el fezera na Andaluzia [...]. Que en mui pouco tenpo acabada, foi a onrra da Virgen corõada e de torres e de muro cercada, segund' aquel logar mester avia.” AFONSO X, op. cit., 1989, p. 244 (tradução da autora). [29] TOMAN, op. cit., 1998, p. 278. [30] “Essa meỹa ssa madre criar a fez pera às Olgas a levar de Burgos”; “E sa moller lavrava o mõesteiro das Olgas.” AFONSO X, op. cit., 1988, p. 68/285 (tradução da autora). [31] “Como hũa omagen de Santa Maria falou nas Olgas de Burgos a ũa moça que ouve medo”; “Como Santa [Maria] fez nas Olgas de Burgos a ũa as omagem que se volveu [na cama] u a deitaron.” AFONSO X, op. cit., 1988, p. 102/232 (tradução da autora). [32] “Nos asiste como avogada y padrõa, vence al diablo, repara las injusticias y las consecuencias de la caída de los primeros padres y nos muestra el caminho derecho.” AFONSO X, op. cit., 1986, p. 14 (tradução da autora).
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