Se quiser citar, tê-lo como referência, usar:
DANTAS, Bárbara. Traduções das Cantigas de Santa Maria do rei Afonso X. História & Arte. 2024.
Esta publicação tem como objetivo disponibilizar de forma mais acessível traduções já publicadas em trabalhos acadêmicos dos textos em galego-português para o português atual dos louvores e dos relatos de milagres que fazem parte do códice afonsino nomeado como as Cantigas de Santa Maria. À medida que forem publicados, cada um dos textos serão aqui acrescentados. De fato, é um trabalho a longo prazo, pois o manuscrito encomendado por D. Afonso, em homenagem à Virgem Maria, possui mais de quatro centenas de canções escritas em galego-português, no formato de verso, acompanhadas de milhares de Letras Capitulares e centenas de iluminuras historiadas de página inteira.
As traduções tentam acompanhar a versificação do texto, o mais próximo possível, tanto da fidedignidade ao original em galego-português quanto ao bom entendimento no português hodierno. Para isso, utilizei como parâmetro formal e como referência teórica a profunda análise dos quatro volumes da obra do filólogo alemão Water Mettmann, publicada entre os anos de 1986 e 1989 pela Editora Castalia, de Madri, na Espanha. Segundo o próprio, a grandiosa obra do rei Afonso possui três parâmetros linguísticos: "el contar, trobar y rimar". No que se refere à Maria, as centenas de canções celebram seu poder como "auxiliadora, medianera y procuradora [...] nos asiste como aviogada y padrõa, vence al diablo, repara las injusticias y las consecuencias de la caída de los primeros padres y nos muestra el camino derecho".
Cf. ALFONSO X, EL SÁBIO. Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann. Madrid: Castalia, 1986-1989, 4 v.
Outra ferramenta teórica largamente utilizada para esta opublicação é o trabalho disponibilizado pela Universidade de Lisboa, o Projeto Littera, que abrange aspectos relacionados com Cantigas Medievais Galego-Portuguesas, em especial, o rico glossário.
Cf. GLOSSÁRIO. Cantigas Medievais Galego-portuguesas. Projeto Littera - FCSH. 2011-2012. Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Para melhorar a compreensão dos textos, antes de cada tradução de relatos de milagres, haverá um resumo em prosa de cada cantiga. tais resumos fazem parte do belo trabalho "Cantigas de Santa Maria Data Base", da universidade de Oxford. São publicados em inglês, cuja tradução em português estará disponível aqui.
Cf. OXFORD Cantigas de Santa Maria Data Base. Centre for the Study of the Cantigas de Santa Maria of Oxford University. Oxford-Reino Unido. 2023.
Desejo a todos excelentes momentos junto às Cantigas do Rei Sábio!
Bárbara Dantas
CANTIGA 4
Um menino judeu chamado Abel, filho de um vidreiro, frequentava a escola com cristãos. Na Páscoa, foi à igreja com os outros alunos e viu o abade dar-lhes a comunhão. Parecia-lhe que a Virgem no altar lhes dava o sacramento. Ele fez fila para receber a comunhão e a Virgem deu a ele. Ele voltou para casa e contou ao pai o que fizera. Seu pai ficou furioso e o jogou na fornalha. Sua mãe, Rachel, gritou e correu para a rua. As pessoas vieram em seu auxílio. A Virgem protegeu o menino no meio das chamas, assim como seu Filho protegeu Hananias, Azarias e Misael [na fornalha ardente]. O menino judeu foi batizado imediatamente, sua mãe converteu-se ao cristianismo e seu pai foi jogado na fornalha.
Esta é como Santa Maria guardou ao fillo do judeu que non ardesse, que seu padre deitara no forno | Esta [cantiga] é como Santa Maria guardou o filho do judeu para que não ardesse, que seu pai colocara no forno |
A Madre do que livrou dos leões Daniel, essa do fogo guardou un menỹo d'Irrael. | A Mãe do que livrou dos leões Daniel, essa do fogo guardou um menino de Israel. |
En Beorges un judeu ouve que fazer sabia vidro, e un fillo seu- ca el en mais non avia, per quant' end' aprendi eu- ontr' os crischãos liya na escol'; e era greu a seu padre Samuel. | Em Bourges[1], um judeu havia que fazer sabia vidro, e um filho seu -porque ele mais não tinha, pelo quanto a respeito aprendi eu- entre os cristãos lia na escola; o que era cruel a seu pai, Samuel. [1] Bourges, comuna francesa. – ALFONSO X, EL SÁBIO. “Glosario.” Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann, op. cit., 1989, p. 469; Id. “Cantiga 4.” Ibid., 1986, p. 63. |
O menỹo o mellor leeu que leer podia e d'aprender gran sabor ouve de quanto oya; e por esto tal amor con esses moços collia, con que era leedor, que ya en seu tropel. | O menino o melhor leu que ler podia e de aprender grande sabor tinha de quanto ouvia; e, por esse tal amor com esses moços colhia, que era leitor, já em seu grupo. |
Poren vos quero contar o que ll' avẽo un dia de Pascoa, que foi entrar na eygreja, u viia o abad' ant' o altar, e aos moços dand' ya ostias de comungar e vy' en un calez bel. | Portanto, desejo vos contar o que lhe aconteceu em um dia de Páscoa, em que foi entrar na igreja, onde via o abade ante o altar, e aos moços dando já hóstias de comungar e vinho em um cálice belo. |
O judeucỹo prazer ouve, ca lle parecia que ostias a comer lles dava Santa Maria, que viia resprandecer eno altar u siia e enos braços tẽer seu Fillo Hemanuel. | O judeuzinho prazer teve, porque lhe parecia que hóstias a comer lhes dava Santa Maria, que via resplandecer no altar, onde estaria e nos braços trazer seu filho Emanuel.[1] [1] “Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamá-lo-ão pelo nome de EMANUEL, que traduzido é: Deus conosco”. – Mateus (Mt 1: 23). In: BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2013, p. 1704. |
Quand' o moç' esta vison vyu, tan muito lle prazia, que por fillar seu quinnon ant' os outros se metia. Santa Maria enton a mão lle porregia, e deu-lle tal comuyon que foi mais doce ca mel. | Quando o moço esta visão viu, tanto muito lhe aprazia, que por pegar seu quinhão antes dos outros se metia. Santa Maria, então A mão lhe estendia, E deu-lhe tal comunhão Que foi mais doce que o mel. |
Poi-la comuyon fillou, logo dali se partia e en cas seu padr' entrou como xe fazer soya; e ele lle preguntou que fezera. El dizia: «A dona me comungou que vi so o chapitel.» | Pois a comunhão pegou, logo dali se partia e em casa seu pai entrou como ele de costume fazia; e ele lhe perguntou o que fizera. Ele dizia: “A Senhora me comungou Mas, eu só vi o capitel”.[1] [1] Capitel: parte superior de coluna ou pilar, geralmente estilizada ou decorada. Em cima do capitel se colocavam esculturas. – BRACONS, José. Saber ver a arte gótica, op. cit., p. 79. |
O padre, quand' est' oyu, creceu-lli tal felonia, que de seu siso sayu; e seu fill' enton prendia, e u o forn' arder vyu meté-o dentr' e choya o forn', e mui mal falyu como traedor cruel. | O pai, quando isto ouviu, cresceu-lhe tal felonia, que de seu juízo saiu; e seu filho, então, prendia, e onde o forno arder viu meteu-o dentro e fecharia o forno, e mui mal agiu como traidor cruel. |
Rachel, sa madre, que ben grand' a seu fillo queria, cuidando sen outra ren que lle no forno ardia, deu grandes vozes poren e ena rua saya; e aque a gente vem ao doo de Rachel. | Rachel, sua mãe, que bem grande a seu filho queria, cuidando sem demora que ele no forno ardia, deu grandes gritos, porém e na rua saía; e eis que a gente vem à lamentação de Rachel. |
Pois souberon sen mentir o por que ela carpia, foron log' o forn' abrir en que o moço jazia, que a Virgen quis guarir como guardou Anania Deus, seu fill', e sen falir Azari' e Misahel. | Pois souberam sem mentir o por que ela carpia, foram logo o forno abrir em que o moço jazia, que a Virgem quis assistir como guardou Ananias Deus, seu filho, e sem falhar Azaria e Misael.[1] [1] “Ananias, Azarias e Misael, bendigam o Senhor; louvem e exaltem o Senhor para sempre. Porque ele nos tirou da mansão dos mortos e nos salvou do poder da morte; livrou-nos da chama da fornalha ardente e retirou-nos do meio do fogo”. – DANIEL (Dn 3: 88). In: BÍBLIA de Jerusalém, op. cit., p. 1560. |
O moço logo dali sacaron con alegria e preguntaron-ll' assi se sse d'algun mal sentia. Diss' el: «Non, ca eu cobri[1] o que a dona cobria que sobelo altar vi con seu Fillo, bon donzel.» [1] “Cobrir tiene aquí el sentido de ‘ponerse, vestir’.” – ALFONSO X, EL SÁBIO. “Cantiga 4.” Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann, op. cit., 1986, p. 66, nota 4. | O moço logo dali tiraram com alegria e lhe perguntaram assim se de algum mal sentia. Disse ele: “Não, porque eu [me] cobri o que a dona [se] cobria que sobre o altar vi com seu Filho, boa donzela”. |
CANTIGA 7
Uma abadessa engravidou de seu mordomo. As freiras sob sua responsabilidade descobriram sua indiscrição e foram vingativas. Eles acusaram a abadessa ao seu bispo, que viajou de Colônia. Ele a convocou. Depois de se encontrar com o bispo, a abadessa rezou à Virgem. Maria apareceu para ela, como num sonho, e fez com que o bebê fosse entregue e enviado para Soissons para ser criado. A abadessa apareceu diante do bispo e ele a fez despir-se. Ele a declarou inocente e repreendeu as freiras.
Esta é como Santa Maria livrou a abadessa prenne, que adormecera ant' o seu altar chorando | Esta [canção conta] como Santa Maria livrou a abadessa grávida que adormecera diante de seu altar chorando |
Santa Maria amar devemos muit' e rogar que a ssa graça ponna sobre nos, por que errar non nos faça, nen peccar, o demo sen vergonna. | Santa Maria amar devemos muito e rogar que a sua graça ponha sobre nós, para que errar não nos faça, nem pecar, o diabo sem vergonha. |
Porende vos contarey un miragre que achei que por hũa badessa fez a Madre do gran Rei, ca, per com' eu apres' ei, era-xe sua essa. Mas o demo enartar a foi, por que emprennnar s' ouve dun de Bolonna, ome que de recadar avia e de guardar seu feit' e sa besonna | Por isso, vos contarei um milagre que achei que por uma abadessa fez a Mãe do grande Rei, pois, pois assim como eu examinei era-lhe sua essa. mas, o demo enganar a foi, porque engravidar se houve de um de Bolonha, homem que governar havia e de guardar seu feito e sua demanda. |
As monjas, pois entender foron esto e saber, ouveron gran lediça; ca, porque lles non sofrer quería de mal fazer, avian-lle mayça.[1] E fórona acusar ao Bispo do logar, e el ben de Colonna hegou y; e pois chamar a fez, vēo sen vagar, leda e mui risonna. [1] A palavra “mayça”, embora esteja na transcrição, não possui correspondente ou significado no Glossário de Mettmann. Tampouco existe em alguma língua. Mas, a palavra “meiça” existe em galego-português e se coaduna com o significado necessário ao termo. Cf. MEIÇA. GLOSSÁRIO. Cantigas Medievais Galego-portuguesas. Projeto Littera - FCSH. Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. 2011-2012. | As monjas, pois ver foram isto e saber, havendo grande alegria; assim, porque elas sem sofrer queriam mal fazer, Havia nelas malícia. E foram a acusar ao Bispo do lugar, e ele bem de Colônia chegou ali; e, pois, chamar a fez, veio sem tardar, feliz e muito risonha. |
O Bispo lle diss' assi: «Dona, per quant' aprendi mui mal vossa fazenda fezestes; e vin aqui por esto, que ante mi façades end' emenda.» | O Bispo lhe disse assim: “Dona, pelo quanto ouvi muito mal vossa façanha fizestes; e vim aqui por isso, que diante de mim faças, a respeito disso, emenda”. |
Mas a dona sen tardar a Madre de Deus rogar foi; e, come quen sonna, Santa Maria tirar lle fez o fill' e criar o mandou en Sanssonna. | |
Tão logo a senhora despertou e salva se achou, logo diante do Bispo veio; e ele muito a observou e desnudá-la mandou; e, pois, viu-lhe o seio, começou Deus a louvar e as donas a blasfemar, que eram da Ordem de Oña, dizendo: “Se Deus me guardar, por salva possa esta dar, que não sei o que lhe imputa”.[1] [1] Tradução: Bárbara Dantas. |
LOUVOR 10
Rosas das rosas e Fror das frores, Dona das donas, Sennor das sennores. | Rosa das rosas, flor das flores, Dona das donas, Senhora das senhoras. |
Rosa de beldad' e de parecer e Fror d'alegria e de prazer, Dona en mui piadosa seer, Sennor en toller coitas e doores. | Rosa de beldade e de parecer e Flor de alegria e de prazer, Dona mui piedosa ser, Senhora em tolher aflições e dores. |
Atal Sennor dev' ome muit' amar, que de todo mal o pode guardar; e pode-ll' os peccados perdõar, que faz no mundo per maos sabores. | A tal Senhora deve o homem muito amar, porque de todo mal o pode guardar e pode-lhe os pecados perdoar, que faz no mundo por maus sabores. |
Devemo-la muit' amar e servir, ca punna de nos guardar de falir; des i dos erros nos faz repentir, que nos fazemos come pecadores. | Devemo-la muito amar e servir, porque insiste em nos guardar de confundir; assim, dos erros nos faz advertir, que nós fazemos como pecadores. |
CANTIGA 25
Um homem cristão gastou todo o seu dinheiro fazendo boas ações. Quando ele esgotou seus fundos, ele pediu um empréstimo às pessoas. Quando ninguém lhe concedeu uma, ele recorreu a um judeu, que concordou em lhe conceder um empréstimo, mas pediu alguma garantia. O cristão ofereceu Maria e Cristo como seus fiadores, e o judeu aceitou os termos. Na presença de testemunhas, o cristão mostrou aos judeus a estátua da Virgem com o Menino. O cristão tocou-os e jurou que os estava colocando como garantia da sua dívida. Ele orou à Virgem, pedindo-lhe que reembolsasse o empréstimo caso ele não o fizesse. Os negócios do cristão correram bem e ele rapidamente ganhou mais dinheiro. No entanto, ele se esqueceu do empréstimo até um dia antes de reembolsá-lo. Como ele estava longe, mandou construir um baú, encheu-o com o dinheiro que devia ao judeu e jogou-o no mar. Ele orou para que Deus o guiasse até seu destino. No dia seguinte, o baú flutuou até o porto de Bizâncio. O servo do judeu foi buscá-lo enquanto ele flutuava, mas não conseguiu agarrá-lo. Repreendendo-o, o judeu entrou no mar e agarrou-o ele mesmo. Ele o levou para casa e encontrou o dinheiro dentro. O judeu escondeu esse segredo de seus amigos e o escondeu debaixo da sua cama. Quando o comerciante cristão chegou, o judeu exigiu o dinheiro e o ameaçou. O cristão afirmou que a Virgem atestaria que ele havia reembolsado o empréstimo, sugerindo que fossem à igreja. O judeu concordou. Parado diante da estátua, o cristão pediu-lhe que contasse a verdade. Imediatamente a estátua da Virgem falou e disse que o judeu realmente recebera o dinheiro. Quando o judeu ouviu isso, ele se converteu ao cristianismo.
Esta é como a ymagen de Santa Maria falou en testimonio ontr' crischão e o judeu | Esta [cantiga conta] como a imagem de Santa Maria falou em testemunho entre o cristão e o judeu |
Pagar ben pod' o que dever o que à Madre de Deus fia. | Pagar bem pode o que dever o que à Mãe de Deus confia. |
E desto vos quero contar un gran miragre mui fremoso, que fezo a Virgen sen par, Madre do gran Rei grorioso, por un ome que seu aver todo ja despendud' avia por fazer ben e mais valer, ca non ja en outra folia. | E disto vos quero contar um grande milagre muito formoso, que fez a Virgem sem par, Madre do grande Rei glorioso, por um homem que seu haver todo já despendido havia por fazer bem e mais valer, sempre em outra loucura. |
Quand' aquel bon ome o seu aver ouv' assi despendudo, non pod' achar, com' aprix eu, d' estrãyo nen de connoçudo quen sol ll' emprestido fazer quisess'; e pois esto viia, a un judeu foi sen lezer provar se ll' alg' enprestaria. | Quando aquele bom homem o seu haver houve assim despendido, não podia achar, como aprendi eu, de estranho nem de conhecido quem apenas lhe empréstimo fazer quisesse; e, pelo que via, a um judeu foi sem tardar provar se algo lhe emprestaria. |
E o judeu lle diss' enton: «Amig', aquesto que tu queres farei eu mui de coraçon sobre bon pennor, se mio deres.» Disse-ll' o crischão: «Poder d'esso fazer non averia, mas fiador quero seer » de cho pagar ben a un dia. | E o judeu lhe disse, então: “Amigo, aquilo que tu queres farei eu de mui coração sobre bom penhor, se me deres”. Disse-lhe o cristão: “Poder para isso fazer não haveria, mas, fiador quero ser” de lhe pagar bem a um dia. |
O judeu lle respos assi: «Sen pennor non será ja feito que o per ren leves de mi.» Diz o crischão: «Fas un preito: ir-t-ei por fiador meter Jeso-Crist' e Santa Maria.» Respos el: «Non quer' eu creer en eles; mas fillar-chos-ya, | O judeu lhe respondeu assim: “sem penhor não será já feito que nada leves de mim”. Diz o cristão: “Faz um pacto: ir-te-ei por fiador obter Jesus Cristo e Santa Maria.” Respondeu ele: “Não quero eu crer neles; mas recebê-los-ia |
Porque sei que santa moller foi ela, e el ome santo e profeta; poren, senner, fillar-chos quer' e dar-ch-ei quanto quiscres, tod' a teu prazer.» E o crischão respondia: «Sas omages, que veer posso, dou-t' en fiadoria.» | porque sei que santa mulher foi ela, e ele homem santo e profeta; por isso, senhor, quero recebê-los e dar-te-ei quanto quiseres, tudo a teu prazer.” E o cristão respondia: “Suas imagens, que ver posso, dou-te em fiadoria.” |
Pois o judeu est' outorgou, ambos se foron mantenente, e as omages lle mostrou o crischão, e ant' a gente tangeu e fillou-ss' a dizer que por fiança llas metia por que ll' o seu fosse render a seu prazo sen tricharia. | Pois o judeu isto outorgou, ambos se foram rapidamente e as imagens lhe mostrou o cristão, e diante da gente tangeu e colocou-as a dizer que por fiança as metia para que a ele o seu fosse devolver a seu prazo sem velhacaria. |
«E vos, Jeso-Cristo, Sennor, e vos, sa Madre muit' onrrada,» diss' el, «se daqui longe for ou mia fazenda enbargada, non possa per prazo perder, se eu pagar non llo podia per mi, mas vos ide põer a paga u mia eu porria. | “E vós, Jesus Cristo, Senhor, e vós, sua Mãe muito honrada.” disse ele: “se daqui longe for ou meu negócio embargar, não possa este prazo perder, se eu pagar não lhe podia por mim, mas vós ides meter a paga onde a minha eu efetuaria. |
Ca eu a vos lo pagarei, e vos fazed' a el a paga, por que non diga pois: «Non ei o meu», e en preito me traga, nen mi o meu faça despender con el andand' en preitesia; ca se de coita a morrer ouvesse, desta morreria.» | Porque eu a vós o pagarei, e vós fareis a ele a paga, para que não diga, pois: “não é o meu”, e em pleito me traga, nem a mim o meu [ganho] faça despender com ele andando em concordância; porque se de aflição morrer houvesse, desta morreria”. |
Poi-lo crischão assi fis fez o judeu, a poucos dias con seu aver quant' ele quis gãou en bõas merchandias; ca ben se soub' entrameter dest' e ben faze-lo sabia; mas foi-ll' o praz' escaecer a que o el pagar devia. | Pois o cristão assim seguro fez o judeu, em poucos dias com seu haver quanto ele quis ganhou em boas mercadorias; porque bem se soube envolver disto e bem fazê-lo sabia. Mas, ocorreu-lhe o prazo esquecer a que a ele pagar devia. |
O crischão, que non mentir quis daquel prazo que posera, ant' un dia que a vĩir ouvesse, foi en coita fera; e por esto fez compõer un' arca, e dentro metia quant' el ao judeu render ouv', e diss': «Ai, Deus, tu o guia.» | O cristão, que não mentir quis daquele prazo que pusera, antes um dia que a vir houvesse, caiu em aflição fera; e, por isso, fez erguer uma arca, e dentro metia quanto ele ao judeu houve, e disse: “Ai, Deus, tu o guia”. |
Dizend' est', en mar la meteu; e o vento moveu as ondas, e outro dia pareceu no porto das aguas mui fondas de Besanç'. E pola prender un judeu mui toste corria, mas log' y ouv' a falecer, que a arc' ant' ele fogia. | Dizendo isto, no mar a meteu; e o vento moveu as ondas, e outro dia apareceu no porto de águas mui fundas de Besançon. E, para a prender um judeu rapidamente corria, mas, logo ali houve a esmorecer; que a arca ante ele fugia. |
E pois o judeu esto vyu, foi, metendo mui grandes vozes, a seu sennor, e el sayu e disse-lle: «Sol duas nozes non vales, que fuste temer o mar con mui gran covardia; mas esto quer' eu cometer, ben leu a mi Deus la daria.» | E, assim, o judeu isto viu, foi em mui grandes vozes, a seu senhor, e ele saiu e disse-lhe: “Nem sequer duas nozes não vales, porque foste temer o mar com mui grande covardia; mas, isto quero eu fazer, bem facilmente a mim Deus a daria.” |
Pois esto disse, non fez al, mas correu alá sen demora, e a archa en guisa tal fez que aportou ant' el fora. Enton foi ssa mão tender e fillou-a con alegria, ca non sse podia soffrer de saber o que y jazia. | Pois isto disse, não fez outra coisa, Mas, correu para lá sem demora, e a arca à guisa tal fez que aportou aonde ele fora. Então, foi sua mão estender e tirou-a com alegria, porque não se podia conter de saber o que ali jazia. |
Des i feze-a levar en a ssa casa, e seus deiros achou en ela. E mui ben se guardou de seus conpanneiros que non ll' ouvessen d'entender de como os el ascondia; poi-los foi contar e volver, a arca pos u el dormia. | Desta forma, fez a levar em à sua casa, e seus dinheiros achou nela. E mui bem o guardou de seus companheiros para que não a houvessem reaver de como eles os escondia; depois os foi contar e revolver, a arca pôs onde ele dormia. |
Pois ouve feito de ssa prol, o mercador ali chegava, e o judeu ben come fol mui de rrijo lle demandava que lle déss' o que ll' acreer fora; se non, que el diria atal cousa per que caer en gran vergonna o faria. | Depois de haver feito de seu lucro, o mercador ali chegava, e o judeu, bem como traidor, mui rijo lhe reclamava que lhe desse o que lhe conceder fora; senão, que ele diria tal coisa pelo que pender em grande vergonha o faria. |
O crischão disse: «Fiel bõo tenno que t' ey pagado: a Virgen, madre do donzel que no altar ch' ouvi mostrado, que te fará ben connocer como foi, ca non mentiria; e tu non queras contender con ela, que mal t' en verria.» | O cristão disse: “Fiel bom tenho que te ei pagado: a Virgem, mãe do jovem que no altar lhe houve mostrado, que te fará bem conhecer como foi, porque não mentiria; e tu não queiras contender com ela, que mal te viria.” |
Diss' o judeu: «Desso me praz; pois vaamos aa eigreja, e se o disser en mia faz a ta omagen, feito seja.» Enton fillaron-s' a correr, e a gente pos eles ya, todos con coita de saber o que daquel preit' averria. | Disse o judeu: “Isso me apraz, pois vamos à igreja, e se o disser na minha face a tua imagem, feito seja”. Então, colocaram-se a correr, e a gente após eles ia, todos com vontade de saber o que daquele pleito aconteceria. |
Pois na eigreja foron, diz o crischão: «Ai, Majestade de Deus, se esta paga fiz, rogo-te que digas verdade per que tu faças parecer do judeu ssa aleivosia, que contra mi cuida trager do que lle dar non deveria.» | Pois na igreja foram, diz o cristão: “Ai, Majestade de Deus, se esta paga fiz, rogo-te que digas verdade para que tu faças aparecer do judeu sua perfídia que contra mim cuidou trazer do que lhe dar não deveria”. |
Enton diss' a Madre de Deus, per como eu achei escrito: «A falssidade dos judeus é grand'; e tu, judeu maldito, sabes que fuste receber teu aver, que ren non falia, e fuste a arc' asconder so teu leito con felonia.» | Então, disse a Mãe de Deus, assim como eu achei escrito: “A falsidade dos judeus é grande; e tu, judeu maldito, sabes que fostes receber teu haver, que nunca falharia, e fostes a arca esconder sob teu leito com perfídia”. |
Quand' est' o judeu entendeu, bes ali logo de chão en Santa Maria creeu e en seu Fill', e foi crischão; ca non vos quis escaecer o que profetou Ysaya, como Deus verria nacer da Virgen por nos todavia.[1] [1] ALFONSO X, EL SÁBIO. Cantigas de Santa Maria. Ed. cr. W. Mettmann, op. cit., 1986, pp. 117-122. |
CANTIGA 93
Um burguês tinha um filho bonito que se entregava a todos os tipos de vícios. Deus lhe infligiu lepra e ele foi morar em um eremitério. Durante três anos viveu uma vida piedosa, recitando mil Ave Marias para que a Virgem tivesse pena dele. Quando ela apareceu a ele, desnudou-lhe o peito e ungiu-lhe o corpo com o seu leite. A lepra desapareceu e sua pele voltou. O homem atravessou o país contando como a Virgem o curara.
Como Santa Maria guareceu um fillo dun burges que era gafo | Como Santa maria curou o filho de um burguês que era leproso |
Nulla enfermidade non é de sãar grav', u a piedade da Virgen chegar. | Nenhuma enfermidade não é de sarar grave, onde a piedade da Virgem chegar. |
Dest' un mui gran miragr' en fillo dun burges mostrou Santa Maria, que foi gafo tres anos e guareceu en mēos que un mes pola sa piedade que lle quis mostrar. | Disto um mui grande milagre no filho de um burguês mostrou Santa Maria, que foi leproso três anos e recuperou em menos de um mês por sua piedade que lhe quis mostrar. |
Est' era mui fremoso e apost' assaz, e ar mui leterado e de bon solaz; mais tod' aquele viço que à carne praz fazia, que ren non queria en leixar. | Este era muito formoso e belo assaz, e, igualmente, muito letrado e de bom caráter; mas todo aquele deleite que à carne prazer fazia, que ele nunca queria deixar. |
El assi manteendo orgull' e desden, quiso Deus que caess' en el mui gran gafeen, ond' ele foi coitado que non quis al ren do mund' erg' ũ' ermid' u se foi apartar. | Ele, assim, mantendo orgulho e desdém, quis Deus que caísse nele grande lepra, onde ele foi afligido que não quis mais nada do mundo, ergueu uma ermida onde foi se apartar. |
E el ali estando, fillou-ss' a dizer ben mil Ave Marias por fazer prazer aa Madre de Deus, por que quisess' aver doo e piadad' e del amērcear. | E ele ali estando, pôs-se a dizer bem mil Ave-Marias para dar prazer à Mãe de Deus, para que quisesse haver dor e piedade e dele se apiedar. |
E el en atal vida tres anos durou, sofrendo ben sa coita, e nunca errou a Deus nen a sa Madre, e sempre rezou as Aves Marias de que vos fui falar. | E ele em tal vida três anos durou, sofrendo bem sua aflição, e nunca errou a Deus nem a sua Mãe, se sempre rezou as Aves Marias de que vos fui falar. |
E pois ouve rezado esta oraçon quanto tenpo dissemos, mostrou-xe-ll' enton a Virgen groriosa e diss': «Oi mais non quero que este mal te faça lazerar.» | Depois de haver rezado esta oração quanto tempo dissemos, mostrou-se lhe, então a Virgem gloriosa e disse: ““Hoje, mais não quero que este mal te faça lancinar.” |
Quando ll' est' ouve dit', a teta descobriu e do seu santo leite o corpo ll' ongiu; e tan tost' a gafeen logo del se partiu, assi que o coiro ouve tod' a mudar. | Quando isto lhe houve dito, a teta descobriu e do seu santo leite o corpo lhe ungiu; e tão rápido a lepra logo dele se partiu, assim que a pele houve toda a mudar |
CANTIGA 103
Um monge entrou em no jardim do mosteiro e descobriu uma bela fonte que nunca vira. Ele sentou-se ao lado dela e rezou à Virgem para que lhe desse uma amostra do Paraíso. Um pássaro começou a cantar uma canção tão linda que o monge ficou encantado. Ele ficou no jardim ouvindo o pássaro durante trezentos anos, embora parecesse que só estava ali há pouco tempo. Quando o pássaro parou de cantar, o monge levantou-se para se juntar aos outros para comer. Ele viu um grande portal que nunca vira e percebeu que este não era o seu mosteiro. Entrou nele, mas não encontrou o abade, o prior ou os frades. Em vez disso, outros tomaram os seus lugares. Ele contou-lhes o que havia acontecido e todos louvaram a Virgem pelo milagre.
Como Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao canto da passarya, porque lle pedia que lle mostrasse qual era o ben que avian os que eran en Paraiso. | Como Santa Maria fez estar o monge trezentos anos ao canto do passarinho[1], porque lhe pedia que lhe mostrasse qual era o bem que tinham os que estavam no Paraíso. [1] Em espanhol, “pajarito”. – ALFONSO X, EL SÁBIO. “Cantiga 103.” Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann, op. cit., 1988, p. 16. Em português, passarinho. |
Quena Virgen ben servirá a Parayso irá. | Quem à Virgem bem servirá ao Paraíso irá. |
E daquest' un gran miragre vos quer' eu ora contar, que fezo Santa Maria por un monge, que rogar ll'ia sempre que lle mostrasse qual ben en Parais' á | E daquilo um grande milagre vos quero eu agora contar, que fez Santa Maria por um monge, que rogar lhe ia sempre que lhe mostrasse qual bem no Paraíso há |
E que o viss' en ssa vida ante que fosse morrer. E porend' a Groriosa vedes que lle foi fazer: fez-lo entrar en hũa orta[1] en que muitas vezes ja [1] Nesta Cantiga as palavras orta e vergeu são sinônimas e surgem em diferentes passagens. Traduzimos como vergel. – ALFONSO X, EL SÁBIO. “Glosario.” Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann, op. cit., 1989, pp. 644, 745. Em português e em outras línguas, como espanhol, vergel significa lugar com árvores, horto, jardim, pomar. – VERGEL. Dicionario de la lengua española. Real Academia Española. | E que o visse em sua vida antes que fosse morrer. E, portanto, a Gloriosa vejas o que lhe foi fazer: fê-lo entrar em um vergel em que muitas vezes já |
Entrara; mais aquel dia fez que hũa font' achou mui crara e mui fremosa, e cab' ela s'assentou. E pois lavou mui ben sas mãos, diss': «Ai, Virgen, que será | Entrara; mas, naquele dia Fez que uma fonte achou muito clara e muito formosa, e junto a ela se assentou. E, pois, lavou muito bem suas mãos, disse: “Ai, Virgem, que será |
Tan toste que acababa ouv' o mong' a oraçon, oyu hũa passarinna cantar log' en tan bon son, que sse escaeceu sendo e catando sempr' alá. | Tão logo que acabada havia o monge a oração, ouviu um passarinho cantar logo em tão bom som, que se esqueceu estando e olhando sempre para lá. |
Tão grande prazer havia naquele canto e naquela cantiga, que grandes trezentos anos esteve assim, ou mais, pensando que não estivera, senão um pouco, como está | |
Mong' algũa vez no ano, quando sal ao vergeu. Des i foi-ss' a passarynna, de que foi a el mui greu, e diz: «Eu daqui ir-me quero, ca oy mais comer querrá | o monge alguma vez no ano, quando sai ao vergel. Então, foi-se o passarinho, o que foi a ele muito cruel, e disse: “Eu daqui ir-me quero, porque hoje mais comer quererá |
O convent'.» E foi-sse logo e achou un gran portal que nunca vira, e disse: «Ai, Santa Maria, val! Non é est' o meu mõesteiro, pois de mi que se fará?» | O convento.” E foi-se logo E achou um grande portal que nunca vira, e disse: “Ai, Santa Maria, vale! Não é este o meu mosteiro, Pois de mim o que se fará?” |
Des i entrou na eigreja, e ouveron gran pavor os monges quando o viron, e demandou-ll' o prior, dizend': «Amigo, vos quen sodes ou que buscades acá?» | Assim, entrou na igreja, e houve grande pavor entre os monges quando o viram, e perguntou-lhe o prior, dizendo: “Amigo, vós quem sois ou o que buscais aqui?”. |
Diss' el: «Busco meu abade, que agor' aqui leixey, e o prior e os frades, de que mi agora quitey quando fui a aquela orta; u seen quen mio dirá?» | Disse ele: “Busco meu abade, que agora aqui deixei, e o prior e os frades, de que agora me separei quando fui àquele vergel; onde estarão quem me dirá?”. |
Quand' est' oyu o abade, teve-o por mal sen, e outrossi o convento; mais des que souberon bem de como fora este feyto, disseron: «Quen oyrá | Quando isto ouviu o abade, tomou-o por delirante, e, igualmente, o convento; mas, desde que souberam bem de como fora este feito, disseram: “Quem ouvirá |
Nunca tan gran maravilla como Deus por este fez polo rogo de ssa Madre, Virgen santa de gran prez! E por aquesto a loemos; mais quena non loará | Nunca tão grande maravilha como Deus por este fez pelo rogo de sua Mãe, Virgem santa de grande intrepidez! E por isso a louvemos; Mas, quem não louvará |
LOUVOR 140
A Santa Maria dadas sejan loores onrradas | À Santa Maria dados sejam louvores honrrados |
Loemos a sa mesura, seu prez, e ssa apostura, e seu sen, e ssa cordura, mui mais ca cen mil vegadas. | Louvemos sua mesura, seu valor e sua compostura, e seu senso e sua cordura, mui mais que cem mil vezes. |
Loemos a ssa nobressa, sa onrra e ssa alteza, sa mercee e ssa franqueza, e sas vertudes preçadas. | Louvemos sua nobreza, sua honra e sua majestade, sua misericórdia e sua franqueza, e suas virtudes apreciadas. |
Loemos sa lealdade, seu conort' e ssa bondade, seu accorr' e ssa verdade, con loores mui cantadas. | Louvemos sua lealdade, seu consolo e sua bondade, seu socorro e sua verdade, com louvores mui cantadas. |
Loemos seu cousimento, conssell' e castigamento, seu ben, seu enssinamento, e sass graças mui grãadas. | Louvemos seu comedimento, seu conselho e castigamento, seu bem, seu ensinamento, a suas graças mui acentudas. |
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