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Foto do escritorAutora | Bárbara Dantas

Traduções das Cantigas de Santa Maria do rei Afonso X (século XIII)

Atualizado: 26 de jun.

Se quiser citar, tê-lo como referência, usar:

DANTAS, Bárbara. Traduções das Cantigas de Santa Maria do rei Afonso X. História & Arte. 2024.


Esta publicação tem como objetivo disponibilizar de forma mais acessível traduções já publicadas em trabalhos acadêmicos dos textos em galego-português para o português atual dos louvores e dos relatos de milagres que fazem parte do códice afonsino nomeado como as Cantigas de Santa Maria. À medida que forem publicados, cada um dos textos serão aqui acrescentados. De fato, é um trabalho a longo prazo, pois o manuscrito encomendado por D. Afonso, em homenagem à Virgem Maria, possui mais de quatro centenas de canções escritas em galego-português, no formato de verso, acompanhadas de milhares de Letras Capitulares e centenas de iluminuras historiadas de página inteira.


As traduções tentam acompanhar a versificação do texto, o mais próximo possível, tanto da fidedignidade ao original em galego-português quanto ao bom entendimento no português hodierno. Para isso, utilizei como parâmetro formal e como referência teórica a profunda análise dos quatro volumes da obra do filólogo alemão Water Mettmann, publicada entre os anos de 1986 e 1989 pela Editora Castalia, de Madri, na Espanha. Segundo o próprio, a grandiosa obra do rei Afonso possui três parâmetros linguísticos: "el contar, trobar y rimar". No que se refere à Maria, as centenas de canções celebram seu poder como "auxiliadora, medianera y procuradora [...] nos asiste como aviogada y padrõa, vence al diablo, repara las injusticias y las consecuencias de la caída de los primeros padres y nos muestra el camino derecho".


Cf. ALFONSO X, EL SÁBIO. Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann. Madrid: Castalia, 1986-1989, 4 v.


Outra ferramenta teórica largamente utilizada para esta opublicação é o trabalho disponibilizado pela Universidade de Lisboa, o Projeto Littera, que abrange aspectos relacionados com Cantigas Medievais Galego-Portuguesas, em especial, o rico glossário.


Cf. GLOSSÁRIO. Cantigas Medievais Galego-portuguesas. Projeto Littera - FCSH. 2011-2012. Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.


Para melhorar a compreensão dos textos, antes de cada tradução de relatos de milagres, haverá um resumo em prosa de cada cantiga. tais resumos fazem parte do belo trabalho "Cantigas de Santa Maria Data Base", da universidade de Oxford. São publicados em inglês, cuja tradução em português estará disponível aqui.


Cf. OXFORD Cantigas de Santa Maria Data Base. Centre for the Study of the Cantigas de Santa Maria of Oxford University. Oxford-Reino Unido. 2023.


Desejo a todos excelentes momentos junto às Cantigas do Rei Sábio!

Bárbara Dantas


CANTIGA 4


Um menino judeu chamado Abel, filho de um vidreiro, frequentava a escola com cristãos. Na Páscoa, foi à igreja com os outros alunos e viu o abade dar-lhes a comunhão. Parecia-lhe que a Virgem no altar lhes dava o sacramento. Ele fez fila para receber a comunhão e a Virgem deu a ele. Ele voltou para casa e contou ao pai o que fizera. Seu pai ficou furioso e o jogou na fornalha. Sua mãe, Rachel, gritou e correu para a rua. As pessoas vieram em seu auxílio. A Virgem protegeu o menino no meio das chamas, assim como seu Filho protegeu Hananias, Azarias e Misael [na fornalha ardente]. O menino judeu foi batizado imediatamente, sua mãe converteu-se ao cristianismo e seu pai foi jogado na fornalha.

Esta é como Santa Maria guardou ao fillo do judeu que non ardesse, que seu padre deitara no forno

Esta [cantiga] é como Santa Maria guardou o filho do judeu para que não ardesse, que seu pai colocara no forno



A Madre do que livrou

 dos leões Daniel,

essa do fogo guardou

 un menỹo d'Irrael.

A Mãe do que livrou

 dos leões Daniel,

 essa do fogo guardou

 um menino de Israel.



En Beorges un judeu

 ouve que fazer sabia

vidro, e un fillo seu-

ca el en mais non avia,

per quant' end' aprendi eu-

ontr' os crischãos liya

 na escol'; e era greu

a seu padre Samuel.

Em Bourges[1], um judeu

havia que fazer sabia

vidro, e um filho seu

-porque ele mais não tinha,

pelo quanto a respeito aprendi eu-

entre os cristãos lia

na escola; o que era cruel

a seu pai, Samuel.


[1] Bourges, comuna francesa. – ALFONSO X, EL SÁBIO. “Glosario.” Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann, op. cit., 1989, p. 469; Id. “Cantiga 4.” Ibid., 1986, p. 63.

O menỹo o mellor

leeu que leer podia

 e d'aprender gran sabor

ouve de quanto oya;

e por esto tal amor

con esses moços collia,

con que era leedor,

que ya en seu tropel.

O menino o melhor

leu que ler podia

e de aprender grande sabor

tinha de quanto ouvia;

e, por esse tal amor

com esses moços colhia,

que era leitor,

já em seu grupo.

Poren vos quero contar

o que ll' avẽo un dia

de Pascoa, que foi entrar

 na eygreja, u viia

o abad' ant' o altar,

e aos moços dand' ya

ostias de comungar

e vy' en un calez bel.

Portanto, desejo vos contar

o que lhe aconteceu em um dia

de Páscoa, em que foi entrar

na igreja, onde via

o abade ante o altar,

e aos moços dando já

hóstias de comungar

e vinho em um cálice belo.

O judeucỹo prazer

ouve, ca lle parecia

que ostias a comer

lles dava Santa Maria,

que viia resprandecer

eno altar u siia

e enos braços tẽer

seu Fillo Hemanuel.

O judeuzinho prazer

teve, porque lhe parecia

que hóstias a comer

lhes dava Santa Maria,

 que via resplandecer

 no altar, onde estaria

e nos braços trazer

seu filho Emanuel.[1]


[1] “Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamá-lo-ão pelo nome de EMANUEL, que traduzido é: Deus conosco”. – Mateus (Mt 1: 23). In: BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2013, p. 1704.

Quand' o moç' esta vison

vyu, tan muito lle prazia,

que por fillar seu quinnon

ant' os outros se metia.

Santa Maria enton

 a mão lle porregia,

e deu-lle tal comuyon

que foi mais doce ca mel.

Quando o moço esta visão

viu, tanto muito lhe aprazia,

que por pegar seu quinhão

antes dos outros se metia.

Santa Maria, então

A mão lhe estendia,

E deu-lhe tal comunhão

Que foi mais doce que o mel.

Poi-la comuyon fillou,

logo dali se partia

e en cas seu padr' entrou

como xe fazer soya;

e ele lle preguntou

 que fezera. El dizia:

 «A dona me comungou

que vi so o chapitel.»

Pois a comunhão pegou,

logo dali se partia

e em casa seu pai entrou

como ele de costume fazia;

e ele lhe perguntou

o que fizera. Ele dizia:

“A Senhora me comungou

Mas, eu só vi o capitel”.[1]


[1] Capitel: parte superior de coluna ou pilar, geralmente estilizada ou decorada. Em cima do capitel se colocavam esculturas. – BRACONS, José. Saber ver a arte gótica, op. cit., p. 79.

O padre, quand' est' oyu,

creceu-lli tal felonia,

que de seu siso sayu;

e seu fill' enton prendia,

e u o forn' arder vyu

meté-o dentr' e choya

o forn', e mui mal falyu

como traedor cruel.

O pai, quando isto ouviu,

cresceu-lhe tal felonia,

que de seu juízo saiu;

e seu filho, então, prendia,

e onde o forno arder viu

meteu-o dentro e fecharia

o forno, e mui mal agiu

como traidor cruel.

Rachel, sa madre, que ben

 grand' a seu fillo queria,

cuidando sen outra ren

que lle no forno ardia,

deu grandes vozes poren

e ena rua saya;

e aque a gente vem

ao doo de Rachel.

Rachel, sua mãe, que bem

grande a seu filho queria,

cuidando sem demora

que ele no forno ardia,

deu grandes gritos, porém

e na rua saía;

e eis que a gente vem

à lamentação de Rachel.

Pois souberon sen mentir

 o por que ela carpia,

foron log' o forn' abrir

en que o moço jazia,

que a Virgen quis guarir

como guardou Anania

Deus, seu fill', e sen falir

Azari' e Misahel.

Pois souberam sem mentir

o por que ela carpia,

foram logo o forno abrir

em que o moço jazia,

que a Virgem quis assistir

como guardou Ananias

Deus, seu filho, e sem falhar

Azaria e Misael.[1]


[1] “Ananias, Azarias e Misael, bendigam o Senhor; louvem e exaltem o Senhor para sempre. Porque ele nos tirou da mansão dos mortos e nos salvou do poder da morte; livrou-nos da chama da fornalha ardente e retirou-nos do meio do fogo”. – DANIEL (Dn 3: 88). In: BÍBLIA de Jerusalém, op. cit., p. 1560.

O moço logo dali

 sacaron con alegria

 e preguntaron-ll' assi

 se sse d'algun mal sentia.

Diss' el: «Non, ca eu cobri[1]

o que a dona cobria

que sobelo altar vi

con seu Fillo, bon donzel.»


[1] “Cobrir tiene aquí el sentido de ‘ponerse, vestir’.” – ALFONSO X, EL SÁBIO. “Cantiga 4.” Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann, op. cit., 1986, p. 66, nota 4.

O moço logo dali

tiraram com alegria

e lhe perguntaram assim

se de algum mal sentia.

Disse ele: “Não, porque eu [me] cobri

 o que a dona [se] cobria

que sobre o altar vi

com seu Filho, boa donzela”.

Por este miragr' atal

log' a judea criya,

e o menỹo sen al

o batismo recebia;

e o padre, que o mal

fezera per sa folia,

deron-ll' enton morte qual

quis dar a seu fill' Abel.[1]


[1] Ibid., pp. 64-65. 

Por este tal milagre

logo a judia cria,

e o menino, sem demora,

o batismo recebia;

e o pai, que o mal

fizera por sua folia,

deram-lhe, então, morte qual

quis dar a seu filho Abel.[1]


[1] Tradução: Bárbara Dantas.


CANTIGA 7


Uma abadessa engravidou de seu mordomo. As freiras sob sua responsabilidade descobriram sua indiscrição e foram vingativas. Eles acusaram a abadessa ao seu bispo, que viajou de Colônia. Ele a convocou. Depois de se encontrar com o bispo, a abadessa rezou à Virgem. Maria apareceu para ela, como num sonho, e fez com que o bebê fosse entregue e enviado para Soissons para ser criado. A abadessa apareceu diante do bispo e ele a fez despir-se. Ele a declarou inocente e repreendeu as freiras.

Esta é como Santa Maria livrou a abadessa prenne, que adormecera ant' o seu altar chorando

Esta [canção conta] como Santa Maria livrou a abadessa grávida que adormecera diante de seu altar chorando



Santa Maria amar

devemos muit' e rogar

que a ssa graça ponna

sobre nos, por que errar

non nos faça, nen peccar,

o demo sen vergonna.

Santa Maria amar

devemos muito e rogar

que a sua graça ponha

sobre nós, para que errar

não nos faça, nem pecar,

o diabo sem vergonha.



Porende vos contarey

un miragre que achei

que por hũa badessa

fez a Madre do gran Rei,

ca, per com' eu apres' ei,

era-xe sua essa.

Mas o demo enartar

a foi, por que emprennnar

s' ouve dun de Bolonna,

ome que de recadar

avia e de guardar

seu feit' e sa besonna

Por isso, vos contarei

um milagre que achei

que por uma abadessa

fez a Mãe do grande Rei,

pois, pois assim como eu examinei

era-lhe sua essa.

mas, o demo enganar

 a foi, porque engravidar

se houve de um de Bolonha,

homem que governar

havia e de guardar

seu feito e sua demanda.

As monjas, pois entender

foron esto e saber,

ouveron gran lediça;

ca, porque lles non sofrer

quería de mal fazer,

avian-lle mayça.[1]

E fórona acusar

ao Bispo do logar,

e el ben de Colonna

hegou y; e pois chamar

a fez, vēo sen vagar,

leda e mui risonna.


[1] A palavra “mayça”, embora esteja na transcrição, não possui correspondente ou significado no Glossário de Mettmann. Tampouco existe em alguma língua. Mas, a palavra “meiça” existe em galego-português e se coaduna com o significado necessário ao termo. Cf. MEIÇA. GLOSSÁRIO. Cantigas Medievais Galego-portuguesas. Projeto Littera - FCSH. Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. 2011-2012.

As monjas, pois ver

foram isto e saber,

havendo grande alegria;

assim, porque elas sem sofrer

queriam mal fazer,

Havia nelas malícia.

E foram a acusar

ao Bispo do lugar,

e ele bem de Colônia

chegou ali; e, pois, chamar

a fez, veio sem tardar,

feliz e muito risonha.

O Bispo lle diss' assi:

«Dona, per quant' aprendi

mui mal vossa fazenda

fezestes; e vin aqui

por esto, que ante mi

façades end' emenda.»

O Bispo lhe disse assim:

“Dona, pelo quanto ouvi

muito mal vossa façanha

fizestes; e vim aqui

por isso, que diante de mim

faças, a respeito disso, emenda”.

Mas a dona sen tardar

a Madre de Deus rogar

foi; e, come quen sonna,

Santa Maria tirar

lle fez o fill' e criar

o mandou en Sanssonna.

Mas a dona, sem demora

à Mãe de Deus rogar

foi; e como quem sonha

Santa Maria tirar

lhe fez o filho e criar

o mandou em Sansonna[1].


[1] Trata-se da cidade francesa de Soissons. ALFONSO X, EL SÁBIO. “Cantiga 7.” Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann, op. cit., 1986, p. 76.

Pois s' a dona espertou

e se guarida achou,

log' ant' o Bispo vēo;

e el muito a catou

e desnua-la mandou;

e pois lle vyu o sēo,

começou Deus a loar

e as donas a brasmar,

que eran d'ordin d'Onna,

dizendo: «Se Deus m'anpar,

por salva poss' esta dar,

que non sei que ll'aponna.» [1]


[1] Ibid., pp. 75-76.

Tão logo a senhora despertou

e salva se achou,

logo diante do Bispo veio;

e ele muito a observou

 e desnudá-la mandou;

e, pois, viu-lhe o seio,

começou Deus a louvar

e as donas a blasfemar,

que eram da Ordem de Oña,

dizendo: “Se Deus me guardar,

por salva possa esta dar,

que não sei o que lhe imputa”.[1]


[1] Tradução: Bárbara Dantas.


LOUVOR 10

Rosas das rosas e Fror das frores,

Dona das donas, Sennor das sennores.

Rosa das rosas, flor das flores,

Dona das donas, Senhora das senhoras.



Rosa de beldad' e de parecer

e Fror d'alegria e de prazer,

Dona en mui piadosa seer,

Sennor en toller coitas e doores.

Rosa de beldade e de parecer

e Flor de alegria e de prazer,

Dona mui piedosa ser,

Senhora em tolher aflições e dores.

Atal Sennor dev' ome muit' amar,

que de todo mal o pode guardar;

e pode-ll' os peccados perdõar,

que faz no mundo per maos sabores.

A tal Senhora deve o homem muito amar,

porque de todo mal o pode guardar

e pode-lhe os pecados perdoar,

que faz no mundo por maus sabores.

Devemo-la muit' amar e servir,

ca punna de nos guardar de falir;

des i dos erros nos faz repentir,

que nos fazemos come pecadores.

Devemo-la muito amar e servir,

porque insiste em nos guardar de confundir;

assim, dos erros nos faz advertir,

que nós fazemos como pecadores.

Esta dona que tenno por Sennor

e de que quero seer trobador,

se eu per ren poss' aver seu amor,

dou ao demo os outros amores.[1]


[1] ALFONSO X, EL SÁBIO. Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann, op. cit., 1986, p. 84.

Esta dona que tenho como Senhora

e de que quero ser trovador,

se eu, porventura, possa ter seu amor,

dou ao demo os outros amores.[1]


[1] Tradução: Bárbara Dantas.


CANTIGA 25


Um homem cristão gastou todo o seu dinheiro fazendo boas ações. Quando ele esgotou seus fundos, ele pediu um empréstimo às pessoas. Quando ninguém lhe concedeu uma, ele recorreu a um judeu, que concordou em lhe conceder um empréstimo, mas pediu alguma garantia. O cristão ofereceu Maria e Cristo como seus fiadores, e o judeu aceitou os termos. Na presença de testemunhas, o cristão mostrou aos judeus a estátua da Virgem com o Menino. O cristão tocou-os e jurou que os estava colocando como garantia da sua dívida. Ele orou à Virgem, pedindo-lhe que reembolsasse o empréstimo caso ele não o fizesse. Os negócios do cristão correram bem e ele rapidamente ganhou mais dinheiro. No entanto, ele se esqueceu do empréstimo até um dia antes de reembolsá-lo. Como ele estava longe, mandou construir um baú, encheu-o com o dinheiro que devia ao judeu e jogou-o no mar. Ele orou para que Deus o guiasse até seu destino. No dia seguinte, o baú flutuou até o porto de Bizâncio. O servo do judeu foi buscá-lo enquanto ele flutuava, mas não conseguiu agarrá-lo. Repreendendo-o, o judeu entrou no mar e agarrou-o ele mesmo. Ele o levou para casa e encontrou o dinheiro dentro. O judeu escondeu esse segredo de seus amigos e o escondeu debaixo da sua cama. Quando o comerciante cristão chegou, o judeu exigiu o dinheiro e o ameaçou. O cristão afirmou que a Virgem atestaria que ele havia reembolsado o empréstimo, sugerindo que fossem à igreja. O judeu concordou. Parado diante da estátua, o cristão pediu-lhe que contasse a verdade. Imediatamente a estátua da Virgem falou e disse que o judeu realmente recebera o dinheiro. Quando o judeu ouviu isso, ele se converteu ao cristianismo.

Esta é como a ymagen de Santa Maria falou en testimonio ontr' crischão e o judeu

Esta [cantiga conta] como a imagem de Santa Maria falou em testemunho entre o cristão e o judeu



Pagar ben pod' o que dever 

o que à Madre de Deus fia. 

Pagar bem pode o que dever

o que à Mãe de Deus confia.



E desto vos quero contar 

un gran miragre mui fremoso,

 que fezo a Virgen sen par, 

Madre do gran Rei grorioso, 

por un ome que seu aver 

todo ja despendud' avia 

por fazer ben e mais valer, 

ca non ja en outra folia.

E disto vos quero contar

um grande milagre muito formoso,

que fez a Virgem sem par,

Madre do grande Rei glorioso,

por um homem que seu haver

todo já despendido havia

por fazer bem e mais valer,

sempre em outra loucura.

Quand' aquel bon ome o seu 

aver ouv' assi despendudo, 

non pod' achar, com' aprix eu, 

d' estrãyo nen de connoçudo 

quen sol ll' emprestido fazer 

quisess'; e pois esto viia, 

a un judeu foi sen lezer

provar se ll' alg' enprestaria.

Quando aquele bom homem o seu

 haver houve assim despendido,

não podia achar, como aprendi eu,

de estranho nem de conhecido

quem apenas lhe empréstimo fazer

quisesse; e, pelo que via,

a um judeu foi sem tardar

provar se algo lhe emprestaria.

E o judeu lle diss' enton: 

«Amig', aquesto que tu queres 

farei eu mui de coraçon 

sobre bon pennor, se mio deres.» 

Disse-ll' o crischão: «Poder 

d'esso fazer non averia, 

mas fiador quero seer »

de cho pagar ben a un dia.

E o judeu lhe disse, então:

“Amigo, aquilo que tu queres

farei eu de mui coração

sobre bom penhor, se me deres”.

Disse-lhe o cristão: “Poder

para isso fazer não haveria,

mas, fiador quero ser”

de lhe pagar bem a um dia.

O judeu lle respos assi: 

«Sen pennor non será ja feito 

que o per ren leves de mi.» 

Diz o crischão: «Fas un preito: 

ir-t-ei por fiador meter 

Jeso-Crist' e Santa Maria.» 

Respos el: «Non quer' eu creer 

en eles; mas fillar-chos-ya,

O judeu lhe respondeu assim:

“sem penhor não será já feito

que nada leves de mim”.

Diz o cristão: “Faz um pacto:

ir-te-ei por fiador obter

Jesus Cristo e Santa Maria.”

Respondeu ele: “Não quero eu crer

neles; mas recebê-los-ia

Porque sei que santa moller 

foi ela, e el ome santo 

e profeta; poren, senner, 

fillar-chos quer' e dar-ch-ei quanto 

quiscres, tod' a teu prazer.» 

E o crischão respondia: 

«Sas omages, que veer 

posso, dou-t' en fiadoria.»

porque sei que santa mulher

foi ela, e ele homem santo

e profeta; por isso, senhor,

quero recebê-los e dar-te-ei quanto

quiseres, tudo a teu prazer.”

E o cristão respondia:

“Suas imagens, que ver

posso, dou-te em fiadoria.”

Pois o judeu est' outorgou, 

ambos se foron mantenente, 

e as omages lle mostrou 

o crischão, e ant' a gente 

tangeu e fillou-ss' a dizer 

que por fiança llas metia 

por que ll' o seu fosse render 

a seu prazo sen tricharia.

Pois o judeu isto outorgou,

ambos se foram rapidamente

e as imagens lhe mostrou

o cristão, e diante da gente

tangeu e colocou-as a dizer

que por fiança as metia

para que a ele o seu fosse devolver

a seu prazo sem velhacaria.

«E vos, Jeso-Cristo, Sennor, 

e vos, sa Madre muit' onrrada,» 

diss' el, «se daqui longe for 

ou mia fazenda enbargada, 

non possa per prazo perder, 

se eu pagar non llo podia 

per mi, mas vos ide põer 

a paga u mia eu porria.

“E vós, Jesus Cristo, Senhor,

e vós, sua Mãe muito honrada.”

disse ele: “se daqui longe for

ou meu negócio embargar,

não possa este prazo perder,

se eu pagar não lhe podia

por mim, mas vós ides meter

a paga onde a minha eu efetuaria.

Ca eu a vos lo pagarei, 

e vos fazed' a el a paga, 

por que non diga pois: «Non ei 

o meu», e en preito me traga, 

nen mi o meu faça despender 

con el andand' en preitesia; 

ca se de coita a morrer 

ouvesse, desta morreria.»

Porque eu a vós o pagarei,

e vós fareis a ele a paga,

para que não diga, pois: “não é

o meu”, e em pleito me traga,

nem a mim o meu [ganho] faça despender

com ele andando em concordância;

porque se de aflição morrer

houvesse, desta morreria”.

Poi-lo crischão assi fis 

fez o judeu, a poucos dias 

con seu aver quant' ele quis 

gãou en bõas merchandias; 

ca ben se soub' entrameter 

dest' e ben faze-lo sabia; 

mas foi-ll' o praz' escaecer 

a que o el pagar devia.

Pois o cristão assim seguro

fez o judeu, em poucos dias

com seu haver quanto ele quis

ganhou em boas mercadorias;

porque bem se soube envolver

disto e bem fazê-lo sabia.

Mas, ocorreu-lhe o prazo esquecer

a que a ele pagar devia.

O crischão, que non mentir 

quis daquel prazo que posera, 

ant' un dia que a vĩir 

ouvesse, foi en coita fera; 

e por esto fez compõer 

un' arca, e dentro metia 

quant' el ao judeu render 

ouv', e diss': «Ai, Deus, tu o guia.»

O cristão, que não mentir

quis daquele prazo que pusera,

antes um dia que a vir

houvesse, caiu em aflição fera;

e, por isso, fez erguer

uma arca, e dentro metia

quanto ele ao judeu

houve, e disse: “Ai, Deus, tu o guia”.

Dizend' est', en mar la meteu;

e o vento moveu as ondas, 

e outro dia pareceu 

no porto das aguas mui fondas 

de Besanç'. E pola prender 

un judeu mui toste corria, 

mas log' y ouv' a falecer, 

que a arc' ant' ele fogia.

Dizendo isto, no mar a meteu;

e o vento moveu as ondas,

e outro dia apareceu

no porto de águas mui fundas

de Besançon. E, para a prender

um judeu rapidamente corria,

mas, logo ali houve a esmorecer;

que a arca ante ele fugia.

E pois o judeu esto vyu, 

foi, metendo mui grandes vozes,

 a seu sennor, e el sayu 

e disse-lle: «Sol duas nozes 

non vales, que fuste temer 

o mar con mui gran covardia; 

mas esto quer' eu cometer, 

ben leu a mi Deus la daria.»

E, assim, o judeu isto viu,

foi em mui grandes vozes,

a seu senhor, e ele saiu

e disse-lhe: “Nem sequer duas nozes

não vales, porque foste temer

o mar com mui grande covardia;

mas, isto quero eu fazer,

bem facilmente a mim Deus a daria.”

Pois esto disse, non fez al, 

mas correu alá sen demora, 

e a archa en guisa tal 

fez que aportou ant' el fora. 

Enton foi ssa mão tender 

e fillou-a con alegria, 

ca non sse podia soffrer 

de saber o que y jazia.

Pois isto disse, não fez outra coisa,

Mas, correu para lá sem demora,

e a arca à guisa tal

fez que aportou aonde ele fora.

Então, foi sua mão estender

e tirou-a com alegria,

porque não se podia conter

de saber o que ali jazia.

Des i feze-a levar en 

a ssa casa, e seus deiros 

achou en ela. E mui ben 

se guardou de seus conpanneiros 

que non ll' ouvessen d'entender 

de como os el ascondia; 

poi-los foi contar e volver, 

a arca pos u el dormia.

Desta forma, fez a levar em

à sua casa, e seus dinheiros

achou nela. E mui bem

o guardou de seus companheiros

para que não a houvessem reaver

de como eles os escondia;

depois os foi contar e revolver,

a arca pôs onde ele dormia.

Pois ouve feito de ssa prol, 

o mercador ali chegava, 

e o judeu ben come fol 

mui de rrijo lle demandava 

que lle déss' o que ll' acreer 

fora; se non, que el diria 

atal cousa per que caer 

en gran vergonna o faria.

Depois de haver feito de seu lucro,

o mercador ali chegava,

e o judeu, bem como traidor,

mui rijo lhe reclamava

que lhe desse o que lhe conceder

fora; senão, que ele diria

tal coisa pelo que pender

em grande vergonha o faria.

O crischão disse: «Fiel 

bõo tenno que t' ey pagado: 

a Virgen, madre do donzel 

que no altar ch' ouvi mostrado, 

que te fará ben connocer 

como foi, ca non mentiria;

e tu non queras contender 

con ela, que mal t' en verria.»

O cristão disse: “Fiel

bom tenho que te ei pagado:

a Virgem, mãe do jovem

que no altar lhe houve mostrado,

que te fará bem conhecer

como foi, porque não mentiria;

e tu não queiras contender

com ela, que mal te viria.”

Diss' o judeu: «Desso me praz; 

pois vaamos aa eigreja, 

e se o disser en mia faz 

a ta omagen, feito seja.» 

Enton fillaron-s' a correr, 

e a gente pos eles ya, 

todos con coita de saber 

o que daquel preit' averria.

Disse o judeu: “Isso me apraz,

pois vamos à igreja,

e se o disser na minha face

a tua imagem, feito seja”.

Então, colocaram-se a correr,

e a gente após eles ia,

todos com vontade de saber

o que daquele pleito aconteceria.

Pois na eigreja foron, diz 

o crischão: «Ai, Majestade

 de Deus, se esta paga fiz,

 rogo-te que digas verdade 

per que tu faças parecer 

do judeu ssa aleivosia, 

que contra mi cuida trager 

do que lle dar non deveria.»

Pois na igreja foram, diz

o cristão: “Ai, Majestade

de Deus, se esta paga fiz,

rogo-te que digas verdade

para que tu faças aparecer

do judeu sua perfídia

que contra mim cuidou trazer

do que lhe dar não deveria”.

Enton diss' a Madre de Deus, 

per como eu achei escrito: 

«A falssidade dos judeus 

é grand'; e tu, judeu maldito, 

sabes que fuste receber 

teu aver, que ren non falia,

e fuste a arc' asconder 

so teu leito con felonia.»

Então, disse a Mãe de Deus,

assim como eu achei escrito:

“A falsidade dos judeus

é grande; e tu, judeu maldito,

sabes que fostes receber

teu haver, que nunca falharia,

e fostes a arca esconder

sob teu leito com perfídia”.

Quand' est' o judeu entendeu, 

bes ali logo de chão 

en Santa Maria creeu 

e en seu Fill', e foi crischão; 

ca non vos quis escaecer 

o que profetou Ysaya, 

como Deus verria nacer 

da Virgen por nos todavia.[1]


[1] ALFONSO X, EL SÁBIO. Cantigas de Santa Maria. Ed. cr. W. Mettmann, op. cit., 1986, pp. 117-122.

Quando isto o judeu entendeu,

bem ali, logo no chão,

em Santa Maria creu

e em seu Filho, e se tornou cristão;

porque não vos quis esconder

o que profetizou Isaías,

como Deus viria a nascer

da Virgem que por nós todavia.[1]


[1] Tradução: Bárbara Dantas.


CANTIGA 93


Um burguês tinha um filho bonito que se entregava a todos os tipos de vícios. Deus lhe infligiu lepra e ele foi morar em um eremitério. Durante três anos viveu uma vida piedosa, recitando mil Ave Marias para que a Virgem tivesse pena dele. Quando ela apareceu a ele, desnudou-lhe o peito e ungiu-lhe o corpo com o seu leite. A lepra desapareceu e sua pele voltou. O homem atravessou o país contando como a Virgem o curara.

Como Santa Maria guareceu um fillo dun burges que era gafo

Como Santa maria curou o filho de um burguês que era leproso



Nulla enfermidade

non é de sãar

grav', u a piedade

da Virgen chegar.

Nenhuma enfermidade

não é de sarar

grave, onde a piedade

da Virgem chegar.



Dest' un mui gran miragr' en fillo dun burges

mostrou Santa Maria, que foi gafo tres

anos e guareceu en mēos que un mes

pola sa piedade que lle quis mostrar.

Disto um mui grande milagre no filho de um burguês

mostrou Santa Maria, que foi leproso três

anos e recuperou em menos de um mês

por sua piedade que lhe quis mostrar.

Est' era mui fremoso e apost' assaz,

e ar mui leterado e de bon solaz;

mais tod' aquele viço que à carne praz

fazia, que ren non queria en leixar.

Este era muito formoso e belo assaz,

e, igualmente, muito letrado e de bom caráter;

mas todo aquele deleite que à carne prazer fazia, que ele nunca queria deixar.

El assi manteendo orgull' e desden,

quiso Deus que caess' en el mui gran gafeen,

ond' ele foi coitado que non quis al ren

do mund' erg' ũ' ermid' u se foi apartar.

Ele, assim, mantendo orgulho e desdém,

quis Deus que caísse nele grande lepra,

onde ele foi afligido que não quis mais nada

do mundo, ergueu uma ermida onde foi se apartar.

E el ali estando, fillou-ss' a dizer 

ben mil Ave Marias por fazer prazer 

aa Madre de Deus, por que quisess' aver

doo e piadad' e del amērcear.

E ele ali estando, pôs-se a dizer

bem mil Ave-Marias para dar prazer

à Mãe de Deus, para que quisesse haver

dor e piedade e dele se apiedar.

E el en atal vida tres anos durou, 

sofrendo ben sa coita, e nunca errou 

a Deus nen a sa Madre, e sempre rezou 

as Aves Marias de que vos fui falar.

E ele em tal vida três anos durou,

sofrendo bem sua aflição, e nunca errou

a Deus nem a sua Mãe, se sempre rezou

as Aves Marias de que vos fui falar.

E pois ouve rezado esta oraçon

quanto tenpo dissemos, mostrou-xe-ll' enton

a Virgen groriosa e diss': «Oi mais non 

quero que este mal te faça lazerar.»

Depois de haver rezado esta oração

quanto tempo dissemos, mostrou-se lhe, então

a Virgem gloriosa e disse: ““Hoje, mais não

quero que este mal te faça lancinar.”

Quando ll' est' ouve dit', a teta descobriu

e do seu santo leite o corpo ll' ongiu; 

e tan tost' a gafeen logo del se partiu, 

assi que o coiro ouve tod' a mudar.

Quando isto lhe houve dito, a teta descobriu

e do seu santo leite o corpo lhe ungiu;

e tão rápido a lepra logo dele se partiu,

assim que a pele houve toda a mudar

Tanto que foi guarido, começou-ss' a ir 

dizendo pela terra como quis vĩir 

a el Santa Maria e o foi guarir, 

por que todos en ela devemos fiar.[1]


[1] ALFONSO X, EL SÁBIO. Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann, op. cit., 1986, pp. 286-287.

Tanto que foi curado, começou-se a ir

dizendo pela terra como quis vir

 a ele Santa Maria e o foi corrigir,

porque todos nela devemos confiar.[1]


[1] Tradução: Bárbara Dantas.


CANTIGA 103


Um monge entrou em no jardim do mosteiro e descobriu uma bela fonte que nunca vira. Ele sentou-se ao lado dela e rezou à Virgem para que lhe desse uma amostra do Paraíso. Um pássaro começou a cantar uma canção tão linda que o monge ficou encantado. Ele ficou no jardim ouvindo o pássaro durante trezentos anos, embora parecesse que só estava ali há pouco tempo. Quando o pássaro parou de cantar, o monge levantou-se para se juntar aos outros para comer. Ele viu um grande portal que nunca vira e percebeu que este não era o seu mosteiro. Entrou nele, mas não encontrou o abade, o prior ou os frades. Em vez disso, outros tomaram os seus lugares. Ele contou-lhes o que havia acontecido e todos louvaram a Virgem pelo milagre.

Como Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao canto da passarya, porque lle pedia que lle mostrasse qual era o ben que avian os que eran en Paraiso.

Como Santa Maria fez estar o monge trezentos anos ao canto do passarinho[1], porque lhe pedia que lhe mostrasse qual era o bem que tinham os que estavam no Paraíso.





[1] Em espanhol, “pajarito”. – ALFONSO X, EL SÁBIO. “Cantiga 103.” Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann, op. cit., 1988, p. 16. Em português, passarinho.





Quena Virgen ben servirá

a Parayso irá.

Quem à Virgem bem servirá

ao Paraíso irá.



E daquest' un gran miragre

vos quer' eu ora contar,

que fezo Santa Maria

por un monge, que rogar

ll'ia sempre que lle mostrasse

qual ben en Parais' á

E daquilo um grande milagre

vos quero eu agora contar,

que fez Santa Maria

por um monge, que rogar

lhe ia sempre que lhe mostrasse

qual bem no Paraíso há

E que o viss' en ssa vida

 ante que fosse morrer.

E porend' a Groriosa

vedes que lle foi fazer:

fez-lo entrar en hũa orta[1]

en que muitas vezes ja


[1] Nesta Cantiga as palavras orta e vergeu são sinônimas e surgem em diferentes passagens. Traduzimos como vergel. – ALFONSO X, EL SÁBIO. “Glosario.” Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann, op. cit., 1989, pp. 644, 745. Em português e em outras línguas, como espanhol, vergel significa lugar com árvores, horto, jardim, pomar. – VERGEL. Dicionario de la lengua española. Real Academia Española.

E que o visse em sua vida

antes que fosse morrer.

E, portanto, a Gloriosa

vejas o que lhe foi fazer:

fê-lo entrar em um vergel

em que muitas vezes já

Entrara; mais aquel dia

fez que hũa font' achou

mui crara e mui fremosa,

e cab' ela s'assentou.

E pois lavou mui ben sas mãos,

diss': «Ai, Virgen, que será

Entrara; mas, naquele dia

Fez que uma fonte achou

muito clara e muito formosa,

e junto a ela se assentou.

E, pois, lavou muito bem suas mãos,

disse: “Ai, Virgem, que será

Se verei do Parayso,

o que eu muito pidi,

algun pouco de seu viço

ante que saya daqui,

e que sábia do que ben obra

que galardon[1] averá?»


[1] Galardon: prêmio, recompensa. – Ibid., p. 579.

Se verei do Paraíso,

o que eu te muito pedi,

algum pouco do seu viço[1]

antes que saia daqui,

e que saiba do que bem obra

que galardão receberá?”


[1] Viço: prazer, gozo, deleite. – ALFONSO X, EL SÁBIO. “Glosario.” Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann, op. cit., 1989, p. 746.

Tan toste que acababa

ouv' o mong' a oraçon,

oyu hũa passarinna

cantar log' en tan bon son,

que sse escaeceu sendo

e catando sempr' alá.

Tão logo que acabada

havia o monge a oração,

ouviu um passarinho

cantar logo em tão bom som,

que se esqueceu estando

e olhando sempre para lá.

Atan gran sabor avia

daquel cant' e daquel lais[1],

que grandes trezentos anos

estevo assi, ou mays,

cuidando que non estevera

senon pouco, com' está


[1] Lais: cantiga. – Ibid., p. 597.

Tão grande prazer havia

naquele canto e naquela cantiga,

que grandes trezentos anos

esteve assim, ou mais,

pensando que não estivera,

senão um pouco, como está

Mong' algũa vez no ano,

quando sal ao vergeu.

Des i foi-ss' a passarynna,

de que foi a el mui greu,

e diz: «Eu daqui ir-me quero,

ca oy mais comer querrá

o monge alguma vez no ano,

quando sai ao vergel.

Então, foi-se o passarinho,

o que foi a ele muito cruel,

e disse: “Eu daqui ir-me quero,

porque hoje mais comer quererá

O convent'.» E foi-sse logo

e achou un gran portal

que nunca vira, e disse:

«Ai, Santa Maria, val!

Non é est' o meu mõesteiro,

pois de mi que se fará?»

O convento.” E foi-se logo

E achou um grande portal

que nunca vira, e disse:

“Ai, Santa Maria, vale!

Não é este o meu mosteiro,

Pois de mim o que se fará?”

Des i entrou na eigreja,

e ouveron gran pavor

os monges quando o viron,

e demandou-ll' o prior,

dizend': «Amigo, vos quen sodes

ou que buscades acá?»

Assim, entrou na igreja,

e houve grande pavor

entre os monges quando o viram,

e perguntou-lhe o prior,

dizendo: “Amigo, vós quem sois

ou o que buscais aqui?”.

Diss' el: «Busco meu abade,

 que agor' aqui leixey,

e o prior e os frades,

de que mi agora quitey

quando fui a aquela orta;

u seen quen mio dirá?»

Disse ele: “Busco meu abade,

que agora aqui deixei,

e o prior e os frades,

de que agora me separei

quando fui àquele vergel;

onde estarão quem me dirá?”.

Quand' est' oyu o abade,

teve-o por mal sen,

e outrossi o convento;

mais des que souberon bem

de como fora este feyto,

disseron: «Quen oyrá

Quando isto ouviu o abade,

tomou-o por delirante,

e, igualmente, o convento;

mas, desde que souberam bem

de como fora este feito,

disseram: “Quem ouvirá

Nunca tan gran maravilla

como Deus por este fez

polo rogo de ssa Madre,

Virgen santa de gran prez!

E por aquesto a loemos;

mais quena non loará

Nunca tão grande maravilha

como Deus por este fez

pelo rogo de sua Mãe,

Virgem santa de grande intrepidez!

E por isso a louvemos;

Mas, quem não louvará

Mais d'outra cousa que seja?

Ca, par Deus, gran dereit' é,

pois quanto nos lle pedimos

nos dá seu Fill', a la ffe,

por ela, e aqui nos mostra

o que nos depois dará».[1]


[1] ALFONSO X, EL SÁBIO. “Cantiga 103.” Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann, op. cit., 1986, pp. 16-18.

Mais de outra coisa que seja?

Porque, para Deus, grande direito é,

pois quanto nós lhe pedimos

nos dá seu Filho, de boa fé,

por ela, e aqui nos mostra

o que a nós depois dará”.[1]


[1] Tradução: Bárbara Dantas.


 LOUVOR 140

A Santa Maria dadas sejan loores onrradas

À Santa Maria dados sejam louvores honrrados



Loemos a sa mesura,

seu prez, e ssa apostura,

e seu sen, e ssa cordura,

mui mais ca cen mil vegadas.

Louvemos sua mesura,

seu valor e sua compostura,

e seu senso e sua cordura,

mui mais que cem mil vezes.

Loemos a ssa nobressa,

sa onrra e ssa alteza,

sa mercee e ssa franqueza,

e sas vertudes preçadas.

Louvemos sua nobreza,

sua honra e sua majestade,

sua misericórdia e sua franqueza,

e suas virtudes apreciadas.

Loemos sa lealdade,

seu conort' e ssa bondade,

seu accorr' e ssa verdade,

con loores mui cantadas.

Louvemos sua lealdade,

seu consolo e sua bondade,

seu socorro e sua verdade,

com louvores mui cantadas.

Loemos seu cousimento,

conssell' e castigamento,

seu ben, seu enssinamento,

e sass graças mui grãadas.

Louvemos seu comedimento,

seu conselho e castigamento,

seu bem, seu ensinamento,

a suas graças mui acentudas.

Loando-a, que nos valla,

lle roguemos na batalla

do mundo que nos traballa,

e do dem' a donodadas.[1]


[1] ALFONSO X, EL SÁBIO. Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann, op. cit., 1988, p. 115.

Louvando-a para que nos valha,

roguemos-lhe na batalha,

do mundo que nos trabalha,

e do demo denodada.[1]


[1] Tradução: Bárbara Dantas.






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